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terça-feira, 8 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 25
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Caim esperou até à meia-noite, uma da manhã; duas e três da alvorada e nada. Regressou ao hotel, sem contactos e com dinheiro apenas para uma ou duas noites confortáveis como a que tinha acabado de passar no Holliday Inn. Tentou telefonar para Portugal e nada. Abriu a carteira, já nervoso, e reparou que a data marcada no bilhete do voo de regresso a Amesterdão-Lisboa era a desse mesmo dia que estava agora a nascer... para as 10 e 15 da manhã. Como era possível atravessar esta Tailândia inteira, entre Nong Khai e Banguecoque, em pouco mais de 3 ou 4 horas? Como? Caim telefonou para o aeroporto local, mas os poucos voos estavam superlotados e as listas de espera eram enormes. Os preços dos táxis aéreos eram ainda mais insuportáveis, impossíveis mesmo. No restaurante, apenas lhe foi dito e redito que não existia, naquelas paragens, qualquer senhor baixinho e nutrido, de nome Long. Caim estava desesperado como havia estado naquele dia em que fugira do Jardim da Estrela para a Bica e daí para Badajoz, Espanha, o mundo... até conhecer Sara e o resto tudo até aqui e agora, neste inóspito norte da Indochina. Caim estava só, sem recursos; sem conseguir sequer ouvir uma voz que fosse do outro lado das ligações telefónicas.
Choveu o dia todo, trovejava; as nuvens vinham rápidas da zona do Laos e Caim viu-se obrigado a regressar ao quarto. Sem saber para onde se virar e fumando desalmadamente, o nosso homem tentava, apesar de tudo, decidir o que fazer, onde se dirigir, que magicar. Parecia um leão dentro de uma jaula, aflito, faminto, sem ver esperança para além dos vidros do quarto do hotel. Relâmpagos e mais relâmpagos atordoaram o fim da manhã e o início da tarde. A essa hora, Caim pagou o hotel e acabou por comprar o bilhete para o habitual comboio da noite. Banguecoque era, para já, o destino escolhido. Depois se veria.
Ao longo da viagem, o nosso Caim, aflito e consumido, reviu as montanhas íngremes a norte do Mekong; reviu depois a lenta descida até à planície central, cheia de florestas de teáceas, ébanos e belas madeiras sândalo; reviu colinas e terrenos mais chãos, repletos de elefantes, templos amarelados e búfalos; de mulheres, aves brancas e crianças dizendo adeus ao comboio; viu intermináveis campos de arroz e aldeias e mais aldeias com mil tecedeiras e árvores do céu; reviu campos de algodão, milho e mandioca; reviu as terras argilosas e pantanais na confluência do Ping e do Nan; reviu os arrabaldes da grande cidade e a desmedida nuvem de poluição que lhe faz aura; reviu, por fim, já na madrugada seguinte, a mesma estação de caminhos-de-ferro de Banguecoque onde fora enganado pelo Sr. Did-Abha, o tal abutre cínico que sorria em falsete com estilo dentinho de coelho tímido. - Como me pude eu deixar enganar? Isto foi coisa do Correia, dos Coimbrãs! Os filhos da puta! E agora o que vai ser da minha vida? Pensou em voz alta Caim em pleno hall da estação monumental de Banguecoque.
Caim andou a pé dezenas e dezenas de quilómetros. Passou pela cidade velha e viu as magníficas chapas de ouro do Mahaprasot; passou por P´hrabat e viu as fabulosas pegadas de Buda; passou pelos exuberantes jardins das muralhas e viu as esmeraldas do mau-olhado; passou por perto das mil balsas de bambu, espalhadas nas águas da dançarina Thai, e viu tudo muito mal parado. No entanto, Caim passou por todo o lado e nunca desistiu, nem nunca vergou, embora em cada cabine telefónica fosse sempre o mesmo vazio; em cada caixa multibanco fosse sempre a mesma recusa; em cada hotel fossem sempre os mesmos preços assustadores. Que fazer?
- O cabrão do Did-Abha... de certeza que me trocou o bilhete de avião, enquanto eu dormia na viagem. E o que é que me terão tramado no cartão de crédito? Será isto uma cilada, uma rasteira; um ardil ou uma simples armadilha? Uma delas é de certeza, pensou Caim em voz mais baixinha, depois de se ter aproximado da zona do porto e de se ter estafado ao longo de quilómetros e quilómetros, o que lhe fez lembrar aquele dia, em Cascais, quando Sara correu, correu e correu sem fim. Entre guindastes, paredões e navios altíssimos de porte e calibre; entre cabos de aço, cadeias e motores; entre contentores, carros japoneses e uma maresia a saber a zinco... Caim foi-se perdendo no ambiente portuário, até que entrou num bairro de construções baixas e bastante humildes, porventura à procura de uma pensão barata e protegida. E foi num dos pobres restaurantes indianos da zona, entre galos e serpentes amestradas, gatos felpudos e gaiolas de aves de todos os tinires e zunires que, talvez por providência ou luso fado, lhe apareceu o Porfírio, embarcadiço gigante de longa experiência e alguma idade, marinheiro de sete tatuagens de Campolide. - Homem, você está perdido ou quê? Se quer uma ajudazinha, ouça-me bem. Fica aqui a trabalhar no restaurante comigo mais uma semanita e temos barco para Roterdão, depois, no dia 15. - Só no dia 15? - Ó amigo antes não há! Se quer voltar a casa e não tem cheta, só lhe resta fazer o que lhe digo. Está a ver aquela varanda emadeirada? Pois é ali que eu costumo dormir. Aqui ganha-se para comer e ainda molhamos o prego, com cuidado, claro, se for o caso. Gosta mais de mulheres ou de meninos? - Então isso nem se pergunta, sou português e homem como você! - Perguntar não ofende, amigo, então não é? E... por estas terras há de tudo, já se sabe.
Caim assentou arraiais na pensão do indiano-tailandês Pandya e partilhou a exígua divisão com Porfírio durante uma semana e mais quatro dias.

Os repuxos do lago do Príncipe Real começam agora a recortar a neblina violeta que, a nascente, parece querer descobrir, por eflúvios, vagas e lassidão da aragem fria, o nascer de mais uma jornada. Novo dia já pressentido pelo grande grupo, liderado pela narração impiedosa de Abel, neste momento - talvez para ganhar fôlego - ainda encostado ao monumento que foi um dia erigido à memória de António França Borges, o fundador do jornal O Mundo. Júlia, Isabel e Dona Joana encostam-se às traseiras do banco mais próximo, enquanto os indianos abrem a boca e os brasileiros, nostálgicos da pura natureza, se perdem a ouvir o canto dos primeiros pássaros. Apenas o deputado olha para o relógio, no preciso instante em que o sapateiro Palmeirim, para trás e para a frente sobre o orvalho do canteiro, parece amiúde falar sozinho. Um cheiro a limão invade Lisboa neste fim de longa noite; do coreto antigo parece a brisa desenhar o claro som de um violoncelo; dos olhos vermelhos de Abel emana a simples visão ou a história fiel de quem foi possuído pelo destino; Sobre o monumento pousa e levanta asas o corvo negro e, por tudo isto ou talvez por nada, ouviu-se dizer na voz fina e misteriosa de Palmeirim: - Rogo ao destino para que todos vós, que me deixastes entre estes sinais abrasados, não conheçam sequer a morte, e que a vida vos seja o que no corvo cacareja apenas de e pela verdade!
Geralmente ninguém entende a ambiguidade da voz de Delfos que fala pelos lábios do sapateiro Palmeirim, com costados de Belmonte, e que é natural dos antigos Remolares alfacinhas. Contudo, Isabel e Júlia sorriram e Abel parece até ter descansado a sua expressão densa e carregada. - E quando é que embarcaram... Caim e Porfírio? Perguntou o Sr. Gouveia, por trás das largas olheiras negras que lhe avivam as maçãs do rosto. Abel ouviu, pensou e logo continuou a sua narração, imperturbável, alheio às horas e a tudo:
- Ali fiquei uns dez dias nas turvas águas de Banguecoque. Ali fiquei aportado naqueles misteriosos bancos de bruma e humidade suspensa. Ali fiquei com o gigante Porfírio, numa casa a dez metros das balças onde um homem lavava a cara, o pescoço ou o queixo, e onde a mulher utilizava a mesmíssima água para cozer o arroz; onde os patos, de asas abertas e bicos longilíneos, se entretinham a chapinhar em solidariedade com as crianças que, por seu lado, rugiam e brincavam sobre as águas acastanhadas, quase soturnas, sempre ladeadas por embarcações a remos, repletas de legumes, transístores, ou garrafas de sumo de limonada. Passava já de meados de Novembro e eu estava farto dos cheiros agridoces a gengibre, pimenta e ao vazio de quem não tem nada na carteira; estava farto da saturação do ar, da palha molhada, da verga e das cascas secas a boiarem na água oleada e preta; estava farto do ruído dos guindastes, das ventoinhas da gare do porto, do brado insistente dos vendedores de massagens; estava farto até dos estilhaços de palavras portuguesas ainda errantes no reino de Sião; estava farto, mas ao mesmo tempo, fascinado e desejoso de estar naquele preciso lugar, para sempre... embora noutra condição, noutro contexto, noutra companhia. Junto a Sara, por exemplo, envolvido por estatuetas e belos sumos e sons, sentado com os pés suspensos no cais envidraçado do Hotel Oriental, à beira do Menan, provando iguarias raras e lendo, depois do chá, um livro da Agatha Christie que também ali se hospedou. Passava já de meados de Novembro, creio que a 17 ou 18, quando finalmente embarcámos com destino a Roterdão.
Que vida a minha!