O Trevo de Abel – Episódio 24
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Caim voou para Banguecoque acompanhado de um senhor alto, magro, franzino e sobretudo sorridente, mais parecia um desses retoques de Hergé desenhados para o comprazimento de Tintim em luta com os Dupont, algures em terras do nascente oriental. Raramente o dito Sr. Did-Abha disse palavra ou gesto mais rasgado que se visse, ao longo das muitas horas de cruzeiro e turbulência, agraciadas pelo bombordo do enorme avião holandês. Na véspera, à noite, Correia tinha conduzido Caim a um restaurante chinês no Alto da Ajuda e foi aí que conheceu, pela primeira vez, os dotes hieráticos, estilo dentinho de coelho tímido, que eram próprios do riso contido de Did-Abha, seu companheiro de viagem. Ao fim de sete horas e meia de voo, aterrámos no meio do mais impiedoso dos desertos e vimos, pouco depois, a nave aproximar-se de um extraordinário e aerodinâmico tubo de metal e vidro, rodeado por todo o tipo de eclécticas mangas e aeronaves em trânsito. Era o Dubai, envolvido por dunas altas, outras mais extensas e breves, de cor de mugem e jade, tingida de gema em tons pastel, apesar das penumbras que voejavam ao ritmo das nuvens mais altas. Foi durante a única escala da viagem, no meio de lentas e acidentadas escadas rolantes, que Did-Abha me contou os detalhes do plano, aliás num razoável Português misturado, imagino, com a antiga língua dos de Sião:
- Quando chegarmos a Banguecoque, você vai logo comigo para a estação e rapidamente, uma meia hora depois, partirá para Nong Khai. É uma viagem longa de comboio, cerca de doze horas, e, pelo caminho, passará por Korat e pela zona de Ubon. No dia seguinte, depois de se refazer de sonos, irá jantar a um restaurante vietnamita situado no centro, o muito conhecido Thai-meo, e, às dez e meia da noite - fixe bem esta hora -, um senhor de fato azul, baixo e nutrido, de nome Long, dirigir-se-á a si. Terá de lhe dar este envelope e esperar. Verá que depois receberá tudo, mas tudo o que precisa. O pagamento, esse, é comigo. Ou seja, quando chegarmos à estação de Banguecoque, vamos juntos a um dos bancos que aí existem e, na minha frente, faz-se logo a transferência que ficou acertada ontem em Lisboa, combinado? Claro, quanto ao regresso, já estamos conversados; creio que o Correia já lhe deve ter contado, a seu tempo, a história toda, não é assim?
É evidente que, recurvado no meu silêncio e habituado a ser travesti de riscos e vidas duplas, mais não fiz do que limitar-me a concordar, enquanto, com os olhos, me ia secretamente apaixonando pelas mulheres veladas e sem rosto; pelos carros japoneses expostos sobre piras de mármore em movimento e, por fim, pela arquitectura celestial que, de dentro do aeroporto, nos dava a ver o deserto como se fosse um puro momento do gravitas; sem espaço, tempo, vida, ecos e referências. E foi com essa carência ou excesso de ritmos e cadências, misturado com visões e saudades das canjas e cozidos de Porto Brandão, que vi o avião bramindo entre os ares do Índico, com destino agora marcado para as terras dos pagodes de ouro, onde existem estanhos de brilho raro e até antigas pegadas de Buda.
Antes de aterrar dormitei e pelas brasas desse sono, revi Sara na montada de um camelo como se pairasse por sobre as vidraças do Dubai e eu, cá em baixo, aflito, com medo que a flagelassem com pedras na mão. Mas que teria ela feita? Perguntava. Mas que segunda vida é esta minha? Insistia ela face ao Emir de longas vestes de seda; quando voltei a olhar para as escadas rolantes... que não resistiam, contudo, à desmedida turbulência, vi então que o pobre Did-Abha fechara o transístor e me dissera a rir: o Sporting perdeu. Foi nessa altura, ao levantar a cabeça, que nitidamente reparei que a minha Sara não voava coisa nenhuma, nem ninguém lhe queria afinal fazer mal. Foi com este alívio pueril e real, entre o sono e a toada dos jactos, que vi na minha frente a boneca da holandesa, hospedeira vestida de verde-claro até nos olhos, a dizer-me que tinha que endireitar o banco e pôr o cinto de segurança. Por baixo, surgiam campos de arroz, água amarelada ou de um azul cor de palha escura e, por fim, a longa pista e muitas palmas.
O táxi fez um longo caminho até chegar à margem do rio Menan que separa a velha da nova cidade. Para trás, ficaram os magníficos cones de ouro do Templo da Aurora ou de Wat-Cheng, ou ainda as muralhas e as barcaças de bambu caldeadas ao longo das águas meio paradas do rio; para trás, ficava também a rapidez da viagem, o cansaço do voo e o suor acumulado pela sonolência prolongada. A estação das chuvas parecia, a pouco e pouco, ter já acabado e algum frio invadia agora, pelo lado norte, a imensa Baía de Sião. Did-Abha sorria com os seus finos dentes de coelho tímido e, num repente, apontou-me para o enorme edifício que dominava a praça onde acabámos por parar. Era a estação de caminho de ferro, cuja fachada ostenta uma espantosa meia-lua de contínuas vidraças, parecida aliás às de Paris. Por baixo, as colunas são regulares, a par a par, e intercalam-se com uma delicadeza mais oriental, como se fossem dedos de uma gigante bailarina Thai submersa no delta. Entrámos pelo alpendre principal e fomos ao banco, onde me limitei a assinar os vários certificados de transferência, enfim muito dinheiro. Minutos depois, despedimo-nos e juro que foi um alívio ver partir aquele sorriso ambulante, carregado talvez de mil ópios e de uma enigmática e cínica timidez.
Uma hora mais tarde, parti para norte. Longa e lenta viagem a perder de vista. Após a imensa planície argilosa e aluvial, os rios separam-se dando origem ao Ping e ao Nan e a linha-férrea inflecte para leste. Surgem ao longe, de cor negra e violeta, as altas montanhas que se estenderão ao longo da fronteira com o Cambodja. Extenuado e exausto vi depois, ao longo de horas, terras e terras de lamaçais e brejos; bosques de sândalo, teácea, ébano e sapão; colinas e solos baixos cheios de búfalos, árvores do céu e tecedeiras a rir à porta de aldeias dominadas por lentos elefantes, templos, e, depois, arroz e sempre arroz e ainda os conhecidos campos de fumo, ou de mandioca, milho e algodão. Até que nas proximidades do Rio Mekong, já claramente na direcção norte, ressurgiram as montanhas e a famosa cidade de Nong Khai, meu destino anunciado. Felizmente consegui quarto num dos Holliday Inn, não muito longe do conhecido restaurante Thai-meo que, por sinal, pontuava nos folhetos turísticos do meu próprio quarto. A noite levar-me-ia umas doze horas de sono e, com elas, assombrações nocturnas, recordações ínvias, estranhas saudades e memórias muito antigas de uma qualquer aurora boreal.
Abruptamente, talvez porque os lençóis me envolviam a cabeça, vi chegar até mim um camponês de chapéu de linho branco que montava um gigantesco búfalo de cornos retorcidos e de olhos virados para água, qual narciso que me olhava; e vi que eu próprio estava submerso e agarrado às roupas de cor amarela e sedenta da bailarina Thai do delta; e vi que ela assentava os dedos dos pés no fundo da baía e os dobrava em ângulo recto até unir os joelhos com sumo equilíbrio; e vi que também desdobrava os braços como se fossem hastes coladas às palmas das mãos muito abertas, onde pousavam sargaços e botilhões, peixe doce, carume e moliço. Agarrei-me ao pescoço da bailarina, bati com os pés no fundo da baía e consegui chegar à superfície da água, da vida. Por cima da água sempre amarelada e suja, vi ainda o pontiagudo pagode de cores áureas que se elevava por cima da cabeça de Thai, a sonhada. Tudo aquilo ondulava lá em baixo e ardia nos olhos do búfalo e até mesmo na expressão de gozo do camponês de chapéu de linho branco que o montava. Quando tirou o chapéu e o próprio véu lendário das iguarias do Dubai, vi afinal que o camponês não era senão o tal desgraçado do Did-Abha que sorria com o seu estilo dentinho de coelho tímido e afanado. Depois, a luz apagou toda a quadratura da imagem e revi, ao fim e ao cabo, que
era a luz por trás dos cortinados do Holliday Inn desta cidade desconhecida de nome Nong Khai, o meu destino anunciado. Tomei duche, refiz-me do corpo e do espírito e, ao espelho, adveio-me ainda a estranheza pelos meus lábios mais espessos, pela minha face mais estreita, pelo meu olhar mais saliente e até, imagine-se, pela minha testa aparentemente mais ovóide e larga. Era assim, eu mesmo, depois de Adão e antes do resto; mas do quê? Espreguicei-me para disfarçar e, de seguida, durante uma hora e meia, tentei sucessivamente telefonar para Porto Brandão e para o Correia, mas não consegui. Raio de ligações e de comunicações, nesta era dos satélites, chips e de logotecnia evaporada!
Durante a tarde, entretive-me sobretudo a ver a CNN com medo das cobras e também das esmeraldas do mau-olhado que, por aqui, no norte da Indochina, se colam ao chão e aos vasos de ouro dos templos, como se fossem lapas em rochas ou estrelas em céu estrelado. Foi só às nove e meia que finalmente avancei, de casaco fechado e com os meus antigos óculos escuros espelhados, até ao terreiro do famoso restaurante de Thai-meo. Comi pato ao estilo do Laos, chá vietnamita e uma espécie de espargos agridoces dos vales do Mekong. Depois, conforme combinado, esperei até às dez e meia da noite pelo senhor de fato azul, baixo e nutrido que daria pelo incisivo nome de Long. Esperei, é evidente, com a justa convicção e com o mesmo porte com que, por exemplo, me lembro de ter recebido a minha tatuagem lilás no Maremagnum de Barcelona.
- Quando chegarmos a Banguecoque, você vai logo comigo para a estação e rapidamente, uma meia hora depois, partirá para Nong Khai. É uma viagem longa de comboio, cerca de doze horas, e, pelo caminho, passará por Korat e pela zona de Ubon. No dia seguinte, depois de se refazer de sonos, irá jantar a um restaurante vietnamita situado no centro, o muito conhecido Thai-meo, e, às dez e meia da noite - fixe bem esta hora -, um senhor de fato azul, baixo e nutrido, de nome Long, dirigir-se-á a si. Terá de lhe dar este envelope e esperar. Verá que depois receberá tudo, mas tudo o que precisa. O pagamento, esse, é comigo. Ou seja, quando chegarmos à estação de Banguecoque, vamos juntos a um dos bancos que aí existem e, na minha frente, faz-se logo a transferência que ficou acertada ontem em Lisboa, combinado? Claro, quanto ao regresso, já estamos conversados; creio que o Correia já lhe deve ter contado, a seu tempo, a história toda, não é assim?
É evidente que, recurvado no meu silêncio e habituado a ser travesti de riscos e vidas duplas, mais não fiz do que limitar-me a concordar, enquanto, com os olhos, me ia secretamente apaixonando pelas mulheres veladas e sem rosto; pelos carros japoneses expostos sobre piras de mármore em movimento e, por fim, pela arquitectura celestial que, de dentro do aeroporto, nos dava a ver o deserto como se fosse um puro momento do gravitas; sem espaço, tempo, vida, ecos e referências. E foi com essa carência ou excesso de ritmos e cadências, misturado com visões e saudades das canjas e cozidos de Porto Brandão, que vi o avião bramindo entre os ares do Índico, com destino agora marcado para as terras dos pagodes de ouro, onde existem estanhos de brilho raro e até antigas pegadas de Buda.
Antes de aterrar dormitei e pelas brasas desse sono, revi Sara na montada de um camelo como se pairasse por sobre as vidraças do Dubai e eu, cá em baixo, aflito, com medo que a flagelassem com pedras na mão. Mas que teria ela feita? Perguntava. Mas que segunda vida é esta minha? Insistia ela face ao Emir de longas vestes de seda; quando voltei a olhar para as escadas rolantes... que não resistiam, contudo, à desmedida turbulência, vi então que o pobre Did-Abha fechara o transístor e me dissera a rir: o Sporting perdeu. Foi nessa altura, ao levantar a cabeça, que nitidamente reparei que a minha Sara não voava coisa nenhuma, nem ninguém lhe queria afinal fazer mal. Foi com este alívio pueril e real, entre o sono e a toada dos jactos, que vi na minha frente a boneca da holandesa, hospedeira vestida de verde-claro até nos olhos, a dizer-me que tinha que endireitar o banco e pôr o cinto de segurança. Por baixo, surgiam campos de arroz, água amarelada ou de um azul cor de palha escura e, por fim, a longa pista e muitas palmas.
O táxi fez um longo caminho até chegar à margem do rio Menan que separa a velha da nova cidade. Para trás, ficaram os magníficos cones de ouro do Templo da Aurora ou de Wat-Cheng, ou ainda as muralhas e as barcaças de bambu caldeadas ao longo das águas meio paradas do rio; para trás, ficava também a rapidez da viagem, o cansaço do voo e o suor acumulado pela sonolência prolongada. A estação das chuvas parecia, a pouco e pouco, ter já acabado e algum frio invadia agora, pelo lado norte, a imensa Baía de Sião. Did-Abha sorria com os seus finos dentes de coelho tímido e, num repente, apontou-me para o enorme edifício que dominava a praça onde acabámos por parar. Era a estação de caminho de ferro, cuja fachada ostenta uma espantosa meia-lua de contínuas vidraças, parecida aliás às de Paris. Por baixo, as colunas são regulares, a par a par, e intercalam-se com uma delicadeza mais oriental, como se fossem dedos de uma gigante bailarina Thai submersa no delta. Entrámos pelo alpendre principal e fomos ao banco, onde me limitei a assinar os vários certificados de transferência, enfim muito dinheiro. Minutos depois, despedimo-nos e juro que foi um alívio ver partir aquele sorriso ambulante, carregado talvez de mil ópios e de uma enigmática e cínica timidez.
Uma hora mais tarde, parti para norte. Longa e lenta viagem a perder de vista. Após a imensa planície argilosa e aluvial, os rios separam-se dando origem ao Ping e ao Nan e a linha-férrea inflecte para leste. Surgem ao longe, de cor negra e violeta, as altas montanhas que se estenderão ao longo da fronteira com o Cambodja. Extenuado e exausto vi depois, ao longo de horas, terras e terras de lamaçais e brejos; bosques de sândalo, teácea, ébano e sapão; colinas e solos baixos cheios de búfalos, árvores do céu e tecedeiras a rir à porta de aldeias dominadas por lentos elefantes, templos, e, depois, arroz e sempre arroz e ainda os conhecidos campos de fumo, ou de mandioca, milho e algodão. Até que nas proximidades do Rio Mekong, já claramente na direcção norte, ressurgiram as montanhas e a famosa cidade de Nong Khai, meu destino anunciado. Felizmente consegui quarto num dos Holliday Inn, não muito longe do conhecido restaurante Thai-meo que, por sinal, pontuava nos folhetos turísticos do meu próprio quarto. A noite levar-me-ia umas doze horas de sono e, com elas, assombrações nocturnas, recordações ínvias, estranhas saudades e memórias muito antigas de uma qualquer aurora boreal.
Abruptamente, talvez porque os lençóis me envolviam a cabeça, vi chegar até mim um camponês de chapéu de linho branco que montava um gigantesco búfalo de cornos retorcidos e de olhos virados para água, qual narciso que me olhava; e vi que eu próprio estava submerso e agarrado às roupas de cor amarela e sedenta da bailarina Thai do delta; e vi que ela assentava os dedos dos pés no fundo da baía e os dobrava em ângulo recto até unir os joelhos com sumo equilíbrio; e vi que também desdobrava os braços como se fossem hastes coladas às palmas das mãos muito abertas, onde pousavam sargaços e botilhões, peixe doce, carume e moliço. Agarrei-me ao pescoço da bailarina, bati com os pés no fundo da baía e consegui chegar à superfície da água, da vida. Por cima da água sempre amarelada e suja, vi ainda o pontiagudo pagode de cores áureas que se elevava por cima da cabeça de Thai, a sonhada. Tudo aquilo ondulava lá em baixo e ardia nos olhos do búfalo e até mesmo na expressão de gozo do camponês de chapéu de linho branco que o montava. Quando tirou o chapéu e o próprio véu lendário das iguarias do Dubai, vi afinal que o camponês não era senão o tal desgraçado do Did-Abha que sorria com o seu estilo dentinho de coelho tímido e afanado. Depois, a luz apagou toda a quadratura da imagem e revi, ao fim e ao cabo, que
era a luz por trás dos cortinados do Holliday Inn desta cidade desconhecida de nome Nong Khai, o meu destino anunciado. Tomei duche, refiz-me do corpo e do espírito e, ao espelho, adveio-me ainda a estranheza pelos meus lábios mais espessos, pela minha face mais estreita, pelo meu olhar mais saliente e até, imagine-se, pela minha testa aparentemente mais ovóide e larga. Era assim, eu mesmo, depois de Adão e antes do resto; mas do quê? Espreguicei-me para disfarçar e, de seguida, durante uma hora e meia, tentei sucessivamente telefonar para Porto Brandão e para o Correia, mas não consegui. Raio de ligações e de comunicações, nesta era dos satélites, chips e de logotecnia evaporada!
Durante a tarde, entretive-me sobretudo a ver a CNN com medo das cobras e também das esmeraldas do mau-olhado que, por aqui, no norte da Indochina, se colam ao chão e aos vasos de ouro dos templos, como se fossem lapas em rochas ou estrelas em céu estrelado. Foi só às nove e meia que finalmente avancei, de casaco fechado e com os meus antigos óculos escuros espelhados, até ao terreiro do famoso restaurante de Thai-meo. Comi pato ao estilo do Laos, chá vietnamita e uma espécie de espargos agridoces dos vales do Mekong. Depois, conforme combinado, esperei até às dez e meia da noite pelo senhor de fato azul, baixo e nutrido que daria pelo incisivo nome de Long. Esperei, é evidente, com a justa convicção e com o mesmo porte com que, por exemplo, me lembro de ter recebido a minha tatuagem lilás no Maremagnum de Barcelona.