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terça-feira, 2 de novembro de 2004

Nota sobre uma polémica em curso

Diz o Pedro Mexia no blogue do amigo MacGuffin:

“(…) eu identifico-me com uma concepção privada da esfera religiosa (como te recordarás, defendi isso mesmo várias vezes). Nesse sentido, subscrevo inteiramente as palavras que citas do João P. Coutinho: (...) essa foi a principal conquista do cristianismo: um espaço íntimo, intocável e privado, onde a «polis» não entra.”

Lembro-me de Cunhal proferir há cerca de vinte anos uma fase que me impressionou. Era qualquer coisa como: “A religião é uma questão do foro íntimo de cada um”. E recordo que Cunhal o afirmava no quadro de uma discussão acerca das inevitáveis ligações entre o político propriamente dito e a questão religiosa (os sistemas tocam-se, todos se tocam e interpenetram. Essa é uma verdade de facto!). Mas, para Cunhal, tornava-se francamente incómodo tocar no afloramento da questão religiosa. Para Cunhal, tornava-se pouco confortável entrar numa discussão no seio da qual tivesse que enfrentar, olhos nos olhos, a expressão ou a transposição para o espaço público de ilações ou modos de encarar o mundo oriundos da esfera religiosa.
Este desejo de separação artificial, de remissão algo intransigente, ou, se se preferir, de esquematização demagógica apenas servia, no caso concreto, um único objectivo: não embaraçar e sobretudo não confundir a defesa da encíclica maniqueísta que Cunhal então professava (e que, segundo imagino, ainda professa hoje em dia).
Esta memória, no meu caso, aturdiu a interessada leitura do texto do Pedro e da polémica envolvente.
Posso perfeitamente compreender o que significa a autonomia da intimidade religiosa no seio da polis contemporânea. A modernidade, aliás, é, ela mesma, um universo de múltiplas autonomias onde se joga o agir livre e as de regras que nele se revelam e delimitam. Mas daí a admitir que a prática religiosa apenas se cumpre numa espécie de redoma (formalmente, dir-se-ia tipo calvinista) que quase escapa à pregnância do espaço público parece-me um tanto falacioso. Direi mais: no Islão não há espaço íntimo, ao nível referido pelo João P. Coutinho , porque um sistema primeiro de tipo teo-semiótico preenche o espaço inteiro da sociabilidade. Num mundo moderno de raiz cristã, o sistema primeiro resulta, ao contrário, do convívio aberto entre a vocação e a manifestação, independentemente da matriz em causa poder ser religiosa ou não. Nesse sentido, mesmo percorrendo com empatia amiga a metáfora “pacificadora” do Pedro, não vejo como se pode pressupor a exterioridade (ou a quase exterioridade) da polis.
Até porque, não sendo católico, acredito que a fé é um tema fértil e inesgotável e, nesse quadro, estou com John Duns Scot: a individualidade dos seres não se afirma nem pela diferença, nem pela matéria, nem pela forma, nem tão-pouco pela quantidade ou pela qualidade, mas antes pela sua natureza (cuja forma, para o teólogo escocês, coincidia nos humanos com a alma). E já se sabe que a natureza não se pode reduzir ao discurso, porque vive por si, tal como o estético respira por si (autotelicamente). Daí que o espaço público não tenha necessariamente que contaminar a individualidade (ou o foro íntimo) que é própria do religioso. Mais uma razão, portanto, da minha discórdia. Ou, pelo menos, da minha estranheza.