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terça-feira, 9 de novembro de 2004

Círculo vicioso e viciado

Vi ontem no canal 46 (Arte) um filme passado durante a revolta argelina (entre 1957 e 1962). O filme era uma co-produção franco-italiana e, como muitos outros filmes europeus do género, revestia-se de tons épicos e colocava nos libertados uma natural aura quase salvífica.
Os colonialistas europeus, neste caso franceses, eram vistos naturalmente como carrascos. Nada mais correcto, dir-se-á. Em Portugal, este é um filme que já todos vimos e revimos muitas vezes. Até à exaustão. E o mesmo se poderia dizer dos filmes ingleses sobre a Índia, dos filmes espanhóis sobre o Atlas ocidental, dos filmes holandeses sobre o Suriname ou dos filmes Belgas sobre o Congo. Neste tipo de filmes (às vezes catárticos), há duas coisas comuns, para além das “palavras de ordem”: o acentuar de que o colonialismo foi uma tragédia real e, por outro lado, o enunciar (explícita ou subliminarmente) de uma mensagem auto-punitiva, já que todos estes filmes provêm afinal do ocidente. Até aqui tudo bem.
A questão mais curiosa e geralmente envolta em tabu é outra. Podemos expô-la através de uma pergunta bastante simples: noutras culturas mundiais, onde é que esta prática é uma prática corrente? Por exemplo, há filmes chineses a exaltar os povos dos Himalaias? Há (ou houve) filmes soviéticos ou russos a exortar os afegãos ou os povos do Báltico? Há filmes africanos a evocar os escravos do interior que os autóctones do litoral entregavam aos ocidentais? Há filmes turcos a invocar as revoltas egípcias do início do século XX?
Bem sei que as usurpações e as ocupações chinesas, turcas, soviéticas, russas e até africanas correspondem, ou corresponderam, a colonialismos persistentes e indiscutíveis ou tão-só a episódios porventura delimitados. A cada caso a sua história, dir-se-á. Mas, por contraste óbvio, pode afirmar-se que há uma verdade que persiste: a Europa convive mal, hoje em dia, com os seus fantasmas e tenta salvar-se dessa densa neurose projectando sobre si própria a violência que ameaça deslustrar a sua auto-imagem de estabilidade democrática. Como se a prática democrática só pudesse ser efectiva, se prostrada na mesa do psiquiatra onde os pesadelos antigos removessem e alterassem o rosto aziago e escondido da velha Europa, restaurada, afinal, há apenas meio século das terríveis clivagens intestinas onde afinal sempre viveu.
O que custa à Europa é saber viver com a integridade a sua história, sem tabus, sem devaneios, sem pesadelos e sem quaisquer ressentimentos. A Europa ainda não soube descobrir com alguma plenitude, nestes últimos cinquenta anos, aquilo que é o valor e a lógica do presente.
E é levada, por isso mesmo, a rever no seu rosto cândido e quase pré-Rafaelita a excrescência terrível que, ao fim e ao cabo, é a mesmíssima imagem com que o terrorismo a revê e a descreve. Espantosa coincidência esta que conduz a ameaça e o ameaçado a pintarem o mesmo anacrónico e simétrico retrato.
Beneficiando da liberdade democrática que atravessa saudavelmente a Europa, as opiniões auto-flageladoras espalham-se cada vez mais como uma mancha de óleo no seu seio, enquanto as minorias culturais (sobretudo as islâmicas - ver o recente caso holandês) radicalizam e reflectem, no mesmo seio, esta auto-imagem auto-punitiva e excrescente. Círculo vicioso e viciado.
Excessivamente sensível a uma espécie de ajuste de contas perverso entre bons e maus, a Europa tem a tendência em assumir o papel destes últimos e a suas próprias expensas (compare-se com o caso norte-americano ou australiano, através dos westerns e da abordagem aos aborígenes). As democracias europeias denotam já há muito este condão, este sintoma, este estranho e enigmático alarme da sua inefável culpabilidade. E nos tempos pós-11/09, esta predisposição da Europa é acentuadamente negativa e tende, como é natural, à desistência, à renúncia ou mesmo ao impasse. É essa, também, por outras palavras, a tímida face do recente mito europeu da grande Suíça imparcial e psicologicamente abstinente que, aqui e ali, se vai revigorando através de meros rituais de celebração histórica.
Não se duvide: é a predisposição que faz a política, e não o contrário.
Concordaria a prazo com uma federação de nações europeias. Mas não com esta singularidade galopante e, pelo menos na aparência, politicamente imparável. E perigosa.