Páginas

quarta-feira, 24 de março de 2004

Pixel

Vi Pixel do coreógrafo Rui Horta no passado fim-de-semana. A cena enclausura os espectadores num túnel que se subdivide em duas partes distintas, através de um fundo móvel. Do lado de cá, um bailarino jovem confrontado com as imagens que produz digitalmente em tempo real e com o espaço cénico que na sua frente se reinventa. Do lado de lá, um bailarino com mais cinquenta anos de vida, hesitando entre a assimetria sonora e plástica e a condução dos actos e gestos que se desenvolvem na cena.
O movimento oscila, erra, desliza ao longo de uma história, dir-se-ia muda, onde em vez de intriga entre sujeitos cresce uma hipernarrativa da pele. Uma espécie de Pele da Cultura de Kerckhove sufragada pela pesquisa imaterial, tecnológica, áspera, quase rude (muito alemã) e descentrada face ao duplo olhar que a limita.
Os dois lados da cena nunca se tocarão e o espaço vital de Pixel acaba por viver precisamente desse desdobrar, dessa prega, dessa morfologia incerta que parece parodiar toda uma tradição do Ocidente em que um lado claro remete sempre para um outro mais obscurecido (que significa ou legitima aquele). Esta descontrução da metafísica em acto é um dos aspectos mais fascinantes de Pixel.
No final, os actores despem-se e a cena apaga-se sem suavidade. A derradeira imagem de um espectador perdurará para além da errância proposta. A clausura passa subitamente a visibilidade. Pixel torna-se então numa experiência quase limite ou na animada natureza do efémero, esse nova estrela que brilha cada vez mais na actualidade.