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domingo, 7 de março de 2004

Não à pena de morte

Hoje saí da atmosfera e fui à blogosfera. Há alguns dias que não o fazia. Sem mais nem menos, fui logo dar com uma discussão sobre a pena de morte. E reparei que a polémica não versava o tema em geral e abstracto, mas antes referenciando o caso concreto do facínora e perverso Marc Dutroux.
Que fique claro: eu sou frontalmente contra a pena de morte, porque acho que não compete ao estado, seja de que modo for, providenciar legalmente pela extinção da vida (embora admita, como é natural, que o quadro político que institui o estado se possa descontextualizar radicalmente numa situação de guerra ou congénere).
Quando o agir da existência humana era dominantemente interpretado através de uma estrutura não racional, ou mais ou menos delirante (teo-semiótica, salvífica ou ideológica), é normal que a questão se pudesse ter colocado (e colocou amiúde). Mas nós, o Ocidente livre, tal como nos conhecemos e entendemos democraticamente a nós próprios, somos uma criação do pós-Iluminismo. Habituámo-nos há muito a descrer das soluções em que o humano se reduz a mero escravo de um rebanho divino ou ideológico. Habituámo-nos há muito a descrer das soluções em que o humano é visto como um viajante que empreenderia um mero trânsito a caminho das redenções, dos pontos-ómega, ou das visionárias sociedades sem classes. E isto apesar das questões individuais de fé, ou de crença.
O estado moderno desenvolvido no ocidente não é um deus, nem é uma arena de arremesso primário e deverá, portanto, conformar-se e confinar-se à racionalidade para que foi pensado, a bem da tolerância, da reinvenção democrática e da salvaguarda radical da liberdade. É por isso que, face a casos concretos (como o de Dutroux), devemos evitar todo o tipo de vacilações. Custa, às vezes, conter a revolta mais gritante e imediata face ao sustentáculo sólido que é o da melhor tradição ocidental. Defendamo-la, pois, fazendo da justiça uma arma impiedosa mas legal contra os crimes hediondos de Dutroux; fazendo da justiça um instituir cego, racional e afastado logicamente das possibilidades que possam prescrever a pena de morte.