Recebi de Nuno Júdice o seu último livro, Guia de conceitos básicos (D. Quixote, Março, 2010). Li-o, no primeiro domingo solar de Março, como se lê qualquer livro de poemas: percorrendo a paisagem que é sempre feita de nós invisíveis, de labirintos (“falta sempre/ alguma coisa que ficou no princípio”), de epifanias (“E o rosto divino apaga-se contra o vidro/ da memória”), de analogias (“a luz do sol escorrer por entre/ as folhas, como se fosse água”), de estações variadas (“para montar armadilhas aos pássaros”) e sobretudo das manhãs que obrigam à “precisão de traço/ que os dedos inscrevem em cada sílaba”.
A leitura desta paisagem acabou por revelar-se chã e cativante: uma linguagem do dia-a-dia que não perde nunca o resplendor do luar. Uma leitura criada pelo ritmo escorreito que procura a sua matéria própria. Uma leitura que se deixa povoar por figuras luminosas: Júpiter, Vénus, várias infantas, Orestes e até o “rosto escondido pela trepadeira/ que (…) ocupa a imaginação”. Uma leitura que sugere e deriva tal como avança: com vagar e com o olhar procurando sempre outro e outro olhar: “Os que vivem devagar desenham/os seus passos no chão para onde não olham”. Um olhar feito da matéria que o fio dos poemas procurará.
Percorrer a paisagem de um livro de poesia – que se lê pela primeira vez – é pressentir a silenciosa redenção que o terá originado. Porque a poesia nasce desse devir que não tem nome, nem forma, nem desígnio. Por vezes, basta o súbito fulgor de uma imagem para acender a razão de ser de toda essa paisagem. É o que acontece, como prefiguração, no final do poema “Ressaca”, quando há ímpetos e sombras que voam “nas paredes, num sopro de gestos, formando uma procissão/ que procura o altar e um desejo sonâmbulo”.
Guia de conceitos básicos de Nuno Júdice fecha com o poema homónimo. Trata-se de uma ininterrupta injunção que descola com ironia e que ancora com cartografia certa: “Use o poema para elaborar uma estratégia/ de sobrevivência no mapa da sua vida”. Trata-se sobretudo de um remate certeiro ou de uma verdadeira cartilha “para que poema/ e vida coincidam”. Citemos duas passagens que, nesse “Guia”, intertextualizam fragmentos de linguagem ‘tech’: “Recorra/ aos dispositivos de imagem, sabendo que/ ela lhe dará um acesso rápido aos recursos/ da alma” e “Se precisar de/ substituir os sentimentos cansados/ da existência, reinstale o desejo/ no painel do corpo”.
Os termos deslizam com súbita intermitência: “dispositivos”, “painel”, “instalar”, programar ou tão-só reiniciar. De facto, a leitura que antes sugeria e derivava, no seu luar de língua viva e chã, acaba por despertar com um brilho que se anuncia paródico, reatando, apesar de tudo, as silhuetas do “desejo sonâmbulo”. E termina assim este interessantíssimo “Guia”, aclarando definitivamente as suas margens: “Escolha uma superfície/ plana: e deslize o seu olhar pelo/ estuário da estrofe” (…) “Verifique/ (…) se todas as opções estão disponíveis: e/ descubra a data e a hora em que o sonho/ se converte em realidade, para que poema/ e vida coincidam.”.
A história de uma conversão, numa palavra. Não necessariamente do sonho para a vida, porque o poema ao dizer “sonho” e ao dizer “vida”, está-nos sobretudo a dar conta da matéria da (sua) poiesis, ou seja: de uma linguagem que se reinventa a si mesma à imagem da (imperscrutável) matéria do olhar.
A leitura desta paisagem acabou por revelar-se chã e cativante: uma linguagem do dia-a-dia que não perde nunca o resplendor do luar. Uma leitura criada pelo ritmo escorreito que procura a sua matéria própria. Uma leitura que se deixa povoar por figuras luminosas: Júpiter, Vénus, várias infantas, Orestes e até o “rosto escondido pela trepadeira/ que (…) ocupa a imaginação”. Uma leitura que sugere e deriva tal como avança: com vagar e com o olhar procurando sempre outro e outro olhar: “Os que vivem devagar desenham/os seus passos no chão para onde não olham”. Um olhar feito da matéria que o fio dos poemas procurará.
Percorrer a paisagem de um livro de poesia – que se lê pela primeira vez – é pressentir a silenciosa redenção que o terá originado. Porque a poesia nasce desse devir que não tem nome, nem forma, nem desígnio. Por vezes, basta o súbito fulgor de uma imagem para acender a razão de ser de toda essa paisagem. É o que acontece, como prefiguração, no final do poema “Ressaca”, quando há ímpetos e sombras que voam “nas paredes, num sopro de gestos, formando uma procissão/ que procura o altar e um desejo sonâmbulo”.
Guia de conceitos básicos de Nuno Júdice fecha com o poema homónimo. Trata-se de uma ininterrupta injunção que descola com ironia e que ancora com cartografia certa: “Use o poema para elaborar uma estratégia/ de sobrevivência no mapa da sua vida”. Trata-se sobretudo de um remate certeiro ou de uma verdadeira cartilha “para que poema/ e vida coincidam”. Citemos duas passagens que, nesse “Guia”, intertextualizam fragmentos de linguagem ‘tech’: “Recorra/ aos dispositivos de imagem, sabendo que/ ela lhe dará um acesso rápido aos recursos/ da alma” e “Se precisar de/ substituir os sentimentos cansados/ da existência, reinstale o desejo/ no painel do corpo”.
Os termos deslizam com súbita intermitência: “dispositivos”, “painel”, “instalar”, programar ou tão-só reiniciar. De facto, a leitura que antes sugeria e derivava, no seu luar de língua viva e chã, acaba por despertar com um brilho que se anuncia paródico, reatando, apesar de tudo, as silhuetas do “desejo sonâmbulo”. E termina assim este interessantíssimo “Guia”, aclarando definitivamente as suas margens: “Escolha uma superfície/ plana: e deslize o seu olhar pelo/ estuário da estrofe” (…) “Verifique/ (…) se todas as opções estão disponíveis: e/ descubra a data e a hora em que o sonho/ se converte em realidade, para que poema/ e vida coincidam.”.
A história de uma conversão, numa palavra. Não necessariamente do sonho para a vida, porque o poema ao dizer “sonho” e ao dizer “vida”, está-nos sobretudo a dar conta da matéria da (sua) poiesis, ou seja: de uma linguagem que se reinventa a si mesma à imagem da (imperscrutável) matéria do olhar.