Numa carta de Lawrence Durrel a Henry Miller, escrita em Belgrado, no mês de Janeiro de 1950 – faz agora precisamente sessenta anos –, Stendhal surgia como o prenúncio maior de uma desejada depuração narrativa: “Nos últimos dias tenho lido bastante Stendhal, cada vez mais convencido de que nas sua grandes novelas ele lançou os fundamentos lineares da ficção para os cinquenta anos que se lhe seguiram. O poder de criar uma personagem de três dimensões numa única frase e de deixar depois a acção revelar a personagem sem mais intervenções do autor”*. A citação parece ter sido feita de propósito para um curtíssimo conto de Truman Capote que, aliás, dá nome a um conhecido volume de contos – A Árvore da noite.
O conto de apenas treze páginas – a edição portuguesa** é, de facto, pitagoricamente metafórica – coloca na carruagem de um comboio (que tinha “assentos de pelúcia encarnada, coçada em parte, e madeiras cor de tinta de iodo”) uma jovem rapariga univesitária que regressa do funeral do tio. Passando pelo meio da multidão que enche de ponta a ponta a carruagem, Kay acaba por sentar-se em frente de um casal que ganha a vida a simular um ininterrupto funeral: ele, um surdo-mudo “com olhos de um azul sombrio”, metia-se num caixão de vidro e depois, perante o choro da assistência, ficava uma hora debaixo da terra (“uma coisa linda, com estrelas de prata pintadas na tampa” do esquife); ela, de pernas curtas e roliças e “chapéu com flores de silicone”, cantava os hinos apropriados, fazia o sermão e recolhia, claro está, o dinheiro do público… sedento de patética desgraça.
O conto, na sua economia radical, adequa-se às mil maravilhas ao princípio de autonomia descritiva evocado por Lawrence Durrel. A rapariga – de nome Kay –, a mulher e o homem surgem, com efeito, na brevíssima história, com a tridimensionalidade viva que parece suscitar uma narrativa sem fim e para a qual a conjectura do leitor projectará sempre novos desafios e possibilidades de intriga. Aliás, o final sublinha este poder de um baixo-relevo dinâmico que parece querer sugerir, por si só, toda uma bizarra mitografia: “E enquanto Kay o observava (ao homem), o rosto dele pareceu transbordar-se e recuar diante dela como uma rocha que desliza, redonda, para o mar. Envolveu-a toda uma lassidão suave, de que mal tinha consciência, quando a mulher lhe retirou a mala do braço e, amavelmente, lhe colocou o impermeável, tal uma mortalha, por cima da cabeça”.
Há mundos, na literatura, para os quais a realidade é um simulacro realmente menor.
*Daniel Gongalves (Org. e tradução), Lawrence Durrel – Henry Miller – Correspondência, Ulisseia, Lisboa, 1965, p. 289.
**Truman Capote, A Árvore da noite em A Árvore da noite, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, pp.157-170 (tradução de Cabral do Nascimento).
O conto de apenas treze páginas – a edição portuguesa** é, de facto, pitagoricamente metafórica – coloca na carruagem de um comboio (que tinha “assentos de pelúcia encarnada, coçada em parte, e madeiras cor de tinta de iodo”) uma jovem rapariga univesitária que regressa do funeral do tio. Passando pelo meio da multidão que enche de ponta a ponta a carruagem, Kay acaba por sentar-se em frente de um casal que ganha a vida a simular um ininterrupto funeral: ele, um surdo-mudo “com olhos de um azul sombrio”, metia-se num caixão de vidro e depois, perante o choro da assistência, ficava uma hora debaixo da terra (“uma coisa linda, com estrelas de prata pintadas na tampa” do esquife); ela, de pernas curtas e roliças e “chapéu com flores de silicone”, cantava os hinos apropriados, fazia o sermão e recolhia, claro está, o dinheiro do público… sedento de patética desgraça.
O conto, na sua economia radical, adequa-se às mil maravilhas ao princípio de autonomia descritiva evocado por Lawrence Durrel. A rapariga – de nome Kay –, a mulher e o homem surgem, com efeito, na brevíssima história, com a tridimensionalidade viva que parece suscitar uma narrativa sem fim e para a qual a conjectura do leitor projectará sempre novos desafios e possibilidades de intriga. Aliás, o final sublinha este poder de um baixo-relevo dinâmico que parece querer sugerir, por si só, toda uma bizarra mitografia: “E enquanto Kay o observava (ao homem), o rosto dele pareceu transbordar-se e recuar diante dela como uma rocha que desliza, redonda, para o mar. Envolveu-a toda uma lassidão suave, de que mal tinha consciência, quando a mulher lhe retirou a mala do braço e, amavelmente, lhe colocou o impermeável, tal uma mortalha, por cima da cabeça”.
Há mundos, na literatura, para os quais a realidade é um simulacro realmente menor.
*Daniel Gongalves (Org. e tradução), Lawrence Durrel – Henry Miller – Correspondência, Ulisseia, Lisboa, 1965, p. 289.
**Truman Capote, A Árvore da noite em A Árvore da noite, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, pp.157-170 (tradução de Cabral do Nascimento).