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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O Isaías de Hemingway

Nunca entendi bem por que razão deu Hemingway o título “O Jardim do Éden” ao romance em que o escritor David Bourne contracena com a sua mulher Catherine e, a partir dos dois últimos terços do livro, com Mirita – a morena baixinha que “tinha o rosto brilhante e com boas cores”.

O “Livro Um” de O Jardim do Éden é passado num pequeno hotel de Le Grau du Roi, junto à respiração de Aigues Mortes na Camarga. O episódio que quase serve de ‘incipit’ alegórico à obra coloca em cena o jovem David a pescar um peixe quase maior que ele para gáudio de toda a terra de marinheiros e peixeiras. O “Livro Dois” conduz o aventuroso enredo para o Atlântico húmido de Hendaia e daí para uma breve incursão a Madrid. Todo a restante intriga – e os seus abismos finais – irradiam a partir da casa cor-de-rosa estilo provençal de La Napoule, a pouca distância de Cannes e Nice. O mar e as praias vazias acabam por fazer jus ao início do livro, embora a tranquilidade quase idílica da abertura acabe por contrastar com os “demónios” que se revelam – e de que maneira – no final.

O Éden estará sobretudo nos personagens figurados da obra e não nos que nela desfilam em carne e osso. Seja carrossel de bebidas que convida o leitor à ininterrupta saga dos mil sabores e odores – Valdepeñas, martinis, uísques, Haig Pinch, Fine à l´eau, absinto, Tio Pepe, Maquereau Vin Blanc, sem esquecer a Perrier Jouet; seja a permanente massa líquida do mar que contribui metaforicamente para que a trama instigue o leitor a um estado de iniciação sem fim. Ora leia-se: “Olhou para o mar e para as nuvens altas e reparou que os barcos de pesca se dirigiam lá longe para Oeste. Depois olhou para a rapariga, que dormia sobre a areia, que já estava seca e começava a levantar-se levemente devido ao vento” (LI,2). Este teor marítimo entretece um ininterrupto ‘pas de deux’ com as navegações do corpo: “Abraçou-a e as ondas levaram-nos./ Beijaram-se e ele disse: /– Tudo de nós foi levado pelo mar./– Temos de voltar. /– Vamos mergulhar mais uma vez abraçados” (LIII,16).

Os abismos da célebre história de Hemingway prendem-se com os dons da intimidade de David e Catherine e, num segundo momento, embora sempre a bordo de um limbo tão incerto quanto cordato, com o terceiro nó do triângulo amoroso: Marita. Mas há um abismo último, quase magnético, que marca o desenlace deste romance. Tudo se passa quando Catherine queima os manuscritos e os recortes de crítica dos livros de David Bourne. Nessa altura, o protagonista quase perde o seu apelo lúdico. A imagem do precipício dá o tom a esta parte final da obra: “(David) sentia-se completamente vazio. Era como ter dado uma curva numa estrada de montanha e depois a estrada desaparecer e só lá estar um precipício”. No capítulo seguinte, a ‘voz da consciência’ de David parece subitamente lógica e crua: “Tens três hipóteses. Tenta lembrar-te do que desapareceu e escrevê-lo de novo. Outra hipótese é escreveres uma nova. E a terceira é continuares com o raio da narrativa.”

No capítulo XXX do Livro IV, a última destas três soluções – reforçada por alguma dose revelatória – acabará por dar sentido ao título do livro. Mas apenas se se partir do princípio que a guerra criativa é uma ‘coisa’ que coincide – saiba-se lá por que artes mágicas – com o paraíso. Leiamos esta parte final que é francamente significativa da conclusão adoptada por Hemingway: “David escrevia com firmeza e as frases que construíra antes apareceram-lhe à frente inteiras e completas, e escreveu-as, corrigindo-as e cortando-as como se estivesse a fazer uma correcção de provas. Não faltava nem uma frase e havia muitas que ele escrevia sem alterar, tal como lhe ocorriam”.

Nem Isaías – se alguma vezs tivesse existido – teria feito melhor!

domingo, 24 de janeiro de 2010

As três dimensões de Stendhal

Numa carta de Lawrence Durrel a Henry Miller, escrita em Belgrado, no mês de Janeiro de 1950 – faz agora precisamente sessenta anos –, Stendhal surgia como o prenúncio maior de uma desejada depuração narrativa: “Nos últimos dias tenho lido bastante Stendhal, cada vez mais convencido de que nas sua grandes novelas ele lançou os fundamentos lineares da ficção para os cinquenta anos que se lhe seguiram. O poder de criar uma personagem de três dimensões numa única frase e de deixar depois a acção revelar a personagem sem mais intervenções do autor”*. A citação parece ter sido feita de propósito para um curtíssimo conto de Truman Capote que, aliás, dá nome a um conhecido volume de contos – A Árvore da noite.

O conto de apenas treze páginas – a edição portuguesa** é, de facto, pitagoricamente metafórica – coloca na carruagem de um comboio (que tinha “assentos de pelúcia encarnada, coçada em parte, e madeiras cor de tinta de iodo”) uma jovem rapariga univesitária que regressa do funeral do tio. Passando pelo meio da multidão que enche de ponta a ponta a carruagem, Kay acaba por sentar-se em frente de um casal que ganha a vida a simular um ininterrupto funeral: ele, um surdo-mudo “com olhos de um azul sombrio”, metia-se num caixão de vidro e depois, perante o choro da assistência, ficava uma hora debaixo da terra (“uma coisa linda, com estrelas de prata pintadas na tampa” do esquife); ela, de pernas curtas e roliças e “chapéu com flores de silicone”, cantava os hinos apropriados, fazia o sermão e recolhia, claro está, o dinheiro do público… sedento de patética desgraça.

O conto, na sua economia radical, adequa-se às mil maravilhas ao princípio de autonomia descritiva evocado por Lawrence Durrel. A rapariga – de nome Kay –, a mulher e o homem surgem, com efeito, na brevíssima história, com a tridimensionalidade viva que parece suscitar uma narrativa sem fim e para a qual a conjectura do leitor projectará sempre novos desafios e possibilidades de intriga. Aliás, o final sublinha este poder de um baixo-relevo dinâmico que parece querer sugerir, por si só, toda uma bizarra mitografia: “E enquanto Kay o observava (ao homem), o rosto dele pareceu transbordar-se e recuar diante dela como uma rocha que desliza, redonda, para o mar. Envolveu-a toda uma lassidão suave, de que mal tinha consciência, quando a mulher lhe retirou a mala do braço e, amavelmente, lhe colocou o impermeável, tal uma mortalha, por cima da cabeça”.

Há mundos, na literatura, para os quais a realidade é um simulacro realmente menor.

*Daniel Gongalves (Org. e tradução), Lawrence Durrel – Henry Miller – Correspondência, Ulisseia, Lisboa, 1965, p. 289.
**Truman Capote, A Árvore da noite em A Árvore da noite, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, pp.157-170 (tradução de Cabral do Nascimento).

A literatura e o genou de Claire


Um homem vê uma mulher na igreja. Esse olhar excede a intensidade da neve de Clermont-Ferrand. Passará uma noite em casa dessa mulher, que se chama Maud, e o universo por ambos tacteado bastar-se-á ao peso da palavra. Um corpo chamado palavra. Antes, no mesmo filme, o protagonista – um católico que desafia a matemática e a revelação possível do ateísmo – discute com um marxista num café. Falam de Pascal, de probabilidades, de si próprios: rostos a preto e branco, poses deíficas, brilhos discretos. E fazem-no, com elegância, a bordo de uma imagem que existe, apenas porque o aparecer da palavra a vai gerando. É neste milagre que reside o génio de Rohmer, desaparecido há precisamente uma semana: desfiar o novelo de perguntas em torno da tentação imobilizadora da imagem que não é capaz de parar, apenas porque gira, porque é, ela mesma, uma imagem.

No cinema de Rohmer, a literatura aparece quase em estado puro. Como um glaciar sem nome. Se é que isso existe. Aparecerá, de certeza, fora de si mesma, como se o realizador tivesse descoberto o espelho perfeito que tornaria a literatura numa espécie de inofensiva Eurídice. Longe do mito, do sagrado, e, portanto, capaz de discorrer – cara a cara – com os muitos Orfeus que narrariam fábulas ou cantariam hinos prosaicos nas quatro estações de cada ano. Mas sobretudo no Inferno frio de Clermont-Ferrand.

É um facto que Rohmer colocou a força da palavra na essência e na textura de todas as suas obras. A intriga nunca passou, nos seus filmes, de um breve pretexto sempre pronto a encarnar o encadeamento do discurso, as metáforas e a perenidade possível do amor – ainda que platónico, iniciático ou inquiridor.

Não é por acaso que este “selvagem solitário” foi professor de literatura antes de se entregar à crítica cinematográfica (escreveu sobre obras de Hawks, Rossellini ou Renoir). Foi redactor da Gazette du cinéma e, entre 1957 e 1963, dos famosos Cahiers du cinéma. Fez estudos académicos sobre o expressionismo alemão, com ênfase para a ideia de espaço no Fausto de Murnau, e foi sempre um grande admirador de Alfred Hitchcock (chegou a assinar com Chabrol um livro sobre o realizador).

Le signe du Lion (1959) foi o seu primeiro filme, mas as mais emblemáticas obras de Rohmer apareceriam mais tarde. Foi o caso, sobretudo, de Ma nuit chez Maud, de 1969, e do mágico Le genou de Claire, do ano seguinte. Até ao ciclo dos fascinantes contos juvenis dos anos noventa (Primavera, 1990; Inverno, 1992; Verão, 1996 e Outono, 1998) e aos últimos filmes desta década (que não vi), Rohmer foi autor de mais uma dúzia de filmes e de um sem número de curtas, trabalhos para televisão e de documentários (com destaque para Ville Nouvelle, de 1975).

Em Le genou de Claire, um homem vive uma paixão rara, quase cirúrgica. Conhece uma jovem mulher chamada Claire e coloca a si próprio um objectivo maior do que as suas próprias forças: tocar, um dia, no joelho de Claire. E há-de consegui-lo, já no epílogo, numa pequena embarcação em que apenas ele e ela se encontram. Todo o mundo se reduz a este acto e a esta grandeza: os dedos que encontram o joelho de Claire. Desejo cumprido, paixão realizada. Grande motivo literário, este, sobretudo se revisto nos dias de hoje; neste nosso tempo ilimitadamente livre, mas, ao mesmo tempo, inquinado pelos terrores da correcção e por milhares de (por vezes indescritíveis) microfascismos.