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sexta-feira, 27 de junho de 2008

Episódios e Meteoros - 90

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(publicado desde ontem no Expresso Online)
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Editado por Fernanda Irene Fonseca, saiu a público, há cerca de um mês, o Diário Inédito de Vergílio Ferreira. Para além de romancista e ensaísta, o autor ficou também conhecido como diarista de fundo, por via sobretudo dos volumes do Conta-Corrente (entre 1980 e 1994). O que não era público até agora era a aventura do diário, ao longo dos anos que sucederam o final da Segunda Grande Guerra Mundial, de 1945 a 1949 (com ligeiro intervalo em 1947).
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A chegada de Vergílio Ferreira a Évora, onde iria viver quase década e meia, domina o diário. Os ecos da vida literária e política do país, neste período conturbado, também ecoam nas pouco mais de cem páginas do volume agora editado pela Bertrand. Mas este diário também acolhe factos pessoais de relevância: o casamento do escritor, o dia dos seus trinta anos e os momentos em que a doença assalta a alarmada consciência do autor de Aparição.
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Há precisamente sessenta anos, no final de Junho de 1948, escrevia Vergílio Ferreira: “É a terceira ou quarta vez que tento o diário. Suponho que desistirei ainda. Tudo e a repugnância de ver o papel que me lê”. Este desafio de blogueador – próprio de quem começa e acaba com a facilidade de uma nuvem que se faz e refaz – é tão livre quanto a revelação que é depois levada a cabo para justificar a própria escrita: “A ironia, essa confissão irresponsável, é o único meio que tenho à mão de condescender em me observar”.
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Ou seja: o “papel” – sim, falamos de um tempo em que se escrevia à mão – parece querer observar o escritor do mesmo modo que o escritor se observa através de uma ironia deliberada. Num trecho de 30 de Junho de 1948, Vergílio Ferreira estabelecerá uma semelhança (panteísta) entre a luz que entra pela janela e a “irresponsabilidade” da confissão que antes designara através da palavra “ironia”:
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“Do alto da galeria da janela pende uma cortina de cassa em pregas fluidas. Com a aragem breve que vem lá de fora, as pregas ondulam abandonadas. A lâmpada apagada roda com o abajur em torno do fio suspenso do tecto. Caio no fundo do sofá e deixo, irresponsável, que a luz quebrada do céu de tarde desça sobre mim, me cubra de sossego.”
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Estes sortilégios dir-se-á ‘rendilhados’ fazem – ou fizeram – o que era, à época, a sacralizada vida de um escritor: um destino ímpar. Veja-se: “Creio que não se fazem obras só com palavras mas também com a própria pessoa do escritor, a sua presença, a sua voz, até a sua gravata. Que são escritores descobertos depois de mortos senão isso mesmo?”. Um destino ímpar em que o escritor surgia em cena como o sacerdote da convulsão moderna. Era este o impasse que caberia a um Vergílio Ferreira de trinta anos quebrar. Um confronto que o existencialismo e a fúria da leitura completavam.
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Estamos tão longe deste “caldo de cultura” (como dizem os pregões televisivos franceses) como do dia em que Henrique VIII disse – “Mate-se!”. A literatura, hoje em dia, é uma natureza exótica e pouco praticada. Confunde-se com a miríade de livros que escala pelos escaparates como mulúsculos nos mercados de Xangai. A coisa que foi a literatura – uma revelação da sociedade e do humano como referência central de vida – encheu o século dezanove e boa parte de novecentos. E hoje olha para nós como uma “ironia” que quase radicalmente nos escapa.