Há mais de oito meses que a Clara Piçarra e o Miguel Sacramento partiram para uma volta ao mundo que o Miniscente tem acompanhado... passo a passo. Pelo menos na medida do possível, já que o ritmo do envio de crónicas em viagem é complicado e, por aqui, nem sempre a edição tem sido tão rápida quanto desejável. O mundo não é perfeito, já se sabe, mas o contentamento por estar - de algum modo - sempre em viagem supera essa natureza inevitável. Para trás, ficou a América do Sul, o grande Pacífico, a Nova Zelândia, a Austrália, a China e, depois, aquele epicentro chamado Tibete que fez notícia. Seguiu-se o Nepal e, agora - há oito dias... -, recebo o texto e a foto oriundos do Vietname. O interessante é que a Clara parece continuar a escrever com a mesma admiração a que deu corpo nos campos de Cuba ou na Patagónia, há mais de meio ano. Mais interessante ainda é que o propósito da Clara se tem mantido incólume: cronicar à medida das sensações e das pequenas histórias que vai recolhendo. Como há dias escrevi, não há nada melhor do que a fiabilidade do efémero. E em viagem esta presunção meio poética adquire quase um tom de verdade.
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"Sa Pa, Vietname"
"Sa Pa, Vietname"
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"Ando devagar. Tão devagar. Como se fosse uma forma de pensar. Vou ao passo do amanhecer, encostada ao nevoeiro. Não sei se piso terra ou pedaços de memória, se invento ou faço parte da história. Estou a viajar há oito meses.
"Ando devagar. Tão devagar. Como se fosse uma forma de pensar. Vou ao passo do amanhecer, encostada ao nevoeiro. Não sei se piso terra ou pedaços de memória, se invento ou faço parte da história. Estou a viajar há oito meses.
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Podia escrever o que sente a menina de uma tribo da montanha, ao carregar o filho às costas, enquanto trabalha nos arrozais e come e se desloca. Porque estamos as duas de mão dada. A andar. Tão devagar. Como se fôssemos uma forma de pensar. Mas. Caladas, não somos apenas aquele momento. Os verdes da montanha não são apenas árvores. Têm todo o mundo dentro. A sombra do Equador, o cheiro de um riso íntimo cubano, os abraços de despedida. Têm o fundo do mar e o silêncio de pedra de uma ilha remota. Não são apenas árvores. São um dia de trabalho duro e o desejo de construir uma casa. São os passos de todos os dias para vender panos e imaginação. São sonhos. Andamos. Devagar. Encostadas ao nevoeiro.
Podia escrever o que sente a menina de uma tribo da montanha, ao carregar o filho às costas, enquanto trabalha nos arrozais e come e se desloca. Porque estamos as duas de mão dada. A andar. Tão devagar. Como se fôssemos uma forma de pensar. Mas. Caladas, não somos apenas aquele momento. Os verdes da montanha não são apenas árvores. Têm todo o mundo dentro. A sombra do Equador, o cheiro de um riso íntimo cubano, os abraços de despedida. Têm o fundo do mar e o silêncio de pedra de uma ilha remota. Não são apenas árvores. São um dia de trabalho duro e o desejo de construir uma casa. São os passos de todos os dias para vender panos e imaginação. São sonhos. Andamos. Devagar. Encostadas ao nevoeiro.
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Podia escrever o que sente uma mulher que, por ser tão velha, se esqueceu da ordem dos gestos. Porque está a passar por mim. De mão fechada e a debruçar-se para uma árvore. Vejo uma lagarta a sair devagar para a liberdade de uma folha. Tão devagar. Como se fosse uma forma de pensar. Espera, de cócoras, de queixo a descansar nos joelhos. Torna a pegar na lagarta e a passar por mim. De sorriso aberto e movimento curvo. Mas. Não somos apenas aquele momento. Os socalcos da montanha não são apenas de arroz. Têm todo o mundo dentro. O céu da Patagónia, uma aldeia entre fiordes, a gargalhada franca de uma vendedora de livros. Não são apenas arroz. São uma vida inteira de trabalho na terra e desejo de conhecer o mar. São os passos de todos os dias para inverter a natureza. São sonhos.
Podia escrever o que sente uma mulher que, por ser tão velha, se esqueceu da ordem dos gestos. Porque está a passar por mim. De mão fechada e a debruçar-se para uma árvore. Vejo uma lagarta a sair devagar para a liberdade de uma folha. Tão devagar. Como se fosse uma forma de pensar. Espera, de cócoras, de queixo a descansar nos joelhos. Torna a pegar na lagarta e a passar por mim. De sorriso aberto e movimento curvo. Mas. Não somos apenas aquele momento. Os socalcos da montanha não são apenas de arroz. Têm todo o mundo dentro. O céu da Patagónia, uma aldeia entre fiordes, a gargalhada franca de uma vendedora de livros. Não são apenas arroz. São uma vida inteira de trabalho na terra e desejo de conhecer o mar. São os passos de todos os dias para inverter a natureza. São sonhos.
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Estou a viajar há oito meses. Podia escrever o que sinto por acordar todos os dias num lugar diferente, sem saber o que me espera ou o que encontro. Mas. Não sou apenas este momento. Os meus dias não são apenas deslocação. Tenho todo o mundo dentro."
Estou a viajar há oito meses. Podia escrever o que sinto por acordar todos os dias num lugar diferente, sem saber o que me espera ou o que encontro. Mas. Não sou apenas este momento. Os meus dias não são apenas deslocação. Tenho todo o mundo dentro."
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Texto: Clara Faria Piçarra
Foto: Miguel Sacramento