Rubem Fonseca, Ela e Outras mulheres, Campo das Letras, Porto, 2008.
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Pré-publicação:
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"Alice"
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“Nosso filho Gabriel, de catorze anos, era gago. Eu e minha mulher Celina já o havíamos levado a vários especialistas, mas a gagueira dele continuava. Gabriel era estudioso e passava de ano em todas as matérias, menos em português, em que sempre ficava de recuperação. Conseguíamos um professor para lhe dar aulas particulares e assim mesmo ele passava com dificuldade.
Nas ocasiões em que o professor mudava, o que podia ocorrer quando Gabriel passava de ano, eu e Celina procurávamos o novo professor para falar das dificuldades do nosso filho. Nesse ano, quando marcámos a entrevista, verificámos que quem ia ensinar português ao Gabriel era uma professora, de nome Alice, que fora transferida de outra escola, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, separada do marido, sem filhos.
A professora perguntou se Gabriel gostava de ler e minha mulher respondeu que ele detestava e se irritava quando o professor mandava ler um livro da bibliografia. A professora Alice disse que isso era comum, os jovens, com algumas excepções, não gostavam de ler.
Uns meses depois a professora Alice nos telefonou pedindo que fôssemos à escola. Ela nos recebeu gentilmente e disse que haviam sido realizadas as primeiras provas e que Gabriel tivera um desempenho abaixo de sofrível. Acrescentou que ele precisaria de aulas particulares. Minha mulher deu um suspiro, era ela quem tomava conta das finanças da família e conhecia melhor do que eu a nossa situação económica. Eu sempre achei que Gabriel deveria estudar numa escola pública, mas Celina queria que ele frequentasse o melhor colégio, cuja mensalidade era uma fortuna.
A professora Alice era uma mulher inteligente e devia ter percebido o nosso embaraço. Ou talvez não tivesse tido a sensibilidade de ler o nosso semblante, apenas notara pelas nossas roupas que nós não pertencíamos ao mesmo nível económico e social dos outros pais que tinham filhos naquele colégio. Houve um instante em que percebi que a professora Alice olhara os sapatos de Celina, e as mulheres entendem de sapatos, e são capazes de descobrir, pelo sapato de uma mulher, o nível económico-social a que ela pertence.
Depois de consultar uma agenda, a professora Alice disse que poderia dar as aulas particulares ao Gabriel sem cobrar por isso. Eu e Celina alegámos, sem muita convicção, que não queríamos dar esse trabalho a ela, mas a professora Alice foi categórica e marcou para todas as terças e quintas-feiras à noite aulas particulares em sua casa.
Aquilo nos deixou aliviados, não apenas deixaríamos de pagar pelas aulas como elas não seriam realizadas em nosso pequeno e desconfortável apartamento.
Um mês mais tarde notei que Gabriel estava deitado no quarto lendo. Perguntei que livro era aquele e ele respondeu que lhe fora emprestado pela professora Alice. Ela é boa professora?, perguntei, e ele respondeu que ela era legal.
Contei para Celina o que acontecera. Ela não acreditou que Gabriel estivesse lendo um livro, disse que ele odiava livros.
Acrescentei que era um livro do Machado de Assis e ela fez uma careta dizendo que quando mandavam ela ler Machado de Assis no colégio ela não conseguia e pedia a uma amiga para lhe dizer qual era a trama do livro, e acrescentou que Machado de Assis era um chato insuportável. Mais tarde, quando estávamos na cama, ela disse, essa professora Alice é uma feiticeira.
Feiticeira do bem, acrescentou depois de uma pausa.
Mas a professora Alice era muito mais feiticeira do que supúnhamos. Além de ter tido uma boa nota na segunda prova e de ficar lendo diariamente, até mesmo deixando de ver o jogo de futebol na televisão, Gabriel parou de gaguejar. Celina lembrou-se do médico que dissera que para curar a gagueira de Gabriel precisaria usar um tal de método holístico.
Ele explicou o que era, escreveu num papel, que eu guardei. A gagueira, conforme escreveu o médico, só poderia ser curada através do holismo, que busca a integração dos aspectos físicos, emocionais, mentais do ser humano. Segundo o médico, nós não éramos apenas matéria física, nem somente consciência, nem unicamente emoções, éramos uma totalidade que precisa ser analisada em sua inteireza. O tratamento holístico custaria uma fortuna. Creio que ele não olhou os sapatos de Celina.
O certo é que Gabriel não gaguejava mais e ao comentar o assunto no escritório um colega me disse que isso era muito comum, um menino ou menina gaguejava até uma certa idade e de repente parava de gaguejar.
Gabriel não apenas falava com desembaraço, também deixara de ter o aspecto sorumbático de antes. Ter-se curado da gagueira lhe fizera um grande bem. E também a Celina, que sentiu-se perdoada. Nós tivemos o Gabriel quando ela tinha dezasseis anos de idade e eu dezoito, ainda solteiros. E ela, que era muito católica, eu diria mesmo uma carola, acreditava que a deficiência de Gabriel tinha sido uma espécie de punição divina e sentia-se culpada.
Convidámos a professora Alice para jantar em nossa casa.
Era uma pessoa agradável, inteligente e muito falante. Quem ficou muito calado durante o jantar foi o Gabriel, certamente com medo de gaguejar na frente da professora. Eu o provoquei várias vezes, mas ele respondia monossilabicamente.
Celina perguntou à professora se Gabriel ainda precisava daquelas aulas extras, explicou que não queríamos abusar da sua generosidade. Alice respondeu que ele estava indo muito bem, principalmente na parte de redacção, pois passara a ler bastante, mas na gramática ainda havia algumas insuficiências.”
Nas ocasiões em que o professor mudava, o que podia ocorrer quando Gabriel passava de ano, eu e Celina procurávamos o novo professor para falar das dificuldades do nosso filho. Nesse ano, quando marcámos a entrevista, verificámos que quem ia ensinar português ao Gabriel era uma professora, de nome Alice, que fora transferida de outra escola, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, separada do marido, sem filhos.
A professora perguntou se Gabriel gostava de ler e minha mulher respondeu que ele detestava e se irritava quando o professor mandava ler um livro da bibliografia. A professora Alice disse que isso era comum, os jovens, com algumas excepções, não gostavam de ler.
Uns meses depois a professora Alice nos telefonou pedindo que fôssemos à escola. Ela nos recebeu gentilmente e disse que haviam sido realizadas as primeiras provas e que Gabriel tivera um desempenho abaixo de sofrível. Acrescentou que ele precisaria de aulas particulares. Minha mulher deu um suspiro, era ela quem tomava conta das finanças da família e conhecia melhor do que eu a nossa situação económica. Eu sempre achei que Gabriel deveria estudar numa escola pública, mas Celina queria que ele frequentasse o melhor colégio, cuja mensalidade era uma fortuna.
A professora Alice era uma mulher inteligente e devia ter percebido o nosso embaraço. Ou talvez não tivesse tido a sensibilidade de ler o nosso semblante, apenas notara pelas nossas roupas que nós não pertencíamos ao mesmo nível económico e social dos outros pais que tinham filhos naquele colégio. Houve um instante em que percebi que a professora Alice olhara os sapatos de Celina, e as mulheres entendem de sapatos, e são capazes de descobrir, pelo sapato de uma mulher, o nível económico-social a que ela pertence.
Depois de consultar uma agenda, a professora Alice disse que poderia dar as aulas particulares ao Gabriel sem cobrar por isso. Eu e Celina alegámos, sem muita convicção, que não queríamos dar esse trabalho a ela, mas a professora Alice foi categórica e marcou para todas as terças e quintas-feiras à noite aulas particulares em sua casa.
Aquilo nos deixou aliviados, não apenas deixaríamos de pagar pelas aulas como elas não seriam realizadas em nosso pequeno e desconfortável apartamento.
Um mês mais tarde notei que Gabriel estava deitado no quarto lendo. Perguntei que livro era aquele e ele respondeu que lhe fora emprestado pela professora Alice. Ela é boa professora?, perguntei, e ele respondeu que ela era legal.
Contei para Celina o que acontecera. Ela não acreditou que Gabriel estivesse lendo um livro, disse que ele odiava livros.
Acrescentei que era um livro do Machado de Assis e ela fez uma careta dizendo que quando mandavam ela ler Machado de Assis no colégio ela não conseguia e pedia a uma amiga para lhe dizer qual era a trama do livro, e acrescentou que Machado de Assis era um chato insuportável. Mais tarde, quando estávamos na cama, ela disse, essa professora Alice é uma feiticeira.
Feiticeira do bem, acrescentou depois de uma pausa.
Mas a professora Alice era muito mais feiticeira do que supúnhamos. Além de ter tido uma boa nota na segunda prova e de ficar lendo diariamente, até mesmo deixando de ver o jogo de futebol na televisão, Gabriel parou de gaguejar. Celina lembrou-se do médico que dissera que para curar a gagueira de Gabriel precisaria usar um tal de método holístico.
Ele explicou o que era, escreveu num papel, que eu guardei. A gagueira, conforme escreveu o médico, só poderia ser curada através do holismo, que busca a integração dos aspectos físicos, emocionais, mentais do ser humano. Segundo o médico, nós não éramos apenas matéria física, nem somente consciência, nem unicamente emoções, éramos uma totalidade que precisa ser analisada em sua inteireza. O tratamento holístico custaria uma fortuna. Creio que ele não olhou os sapatos de Celina.
O certo é que Gabriel não gaguejava mais e ao comentar o assunto no escritório um colega me disse que isso era muito comum, um menino ou menina gaguejava até uma certa idade e de repente parava de gaguejar.
Gabriel não apenas falava com desembaraço, também deixara de ter o aspecto sorumbático de antes. Ter-se curado da gagueira lhe fizera um grande bem. E também a Celina, que sentiu-se perdoada. Nós tivemos o Gabriel quando ela tinha dezasseis anos de idade e eu dezoito, ainda solteiros. E ela, que era muito católica, eu diria mesmo uma carola, acreditava que a deficiência de Gabriel tinha sido uma espécie de punição divina e sentia-se culpada.
Convidámos a professora Alice para jantar em nossa casa.
Era uma pessoa agradável, inteligente e muito falante. Quem ficou muito calado durante o jantar foi o Gabriel, certamente com medo de gaguejar na frente da professora. Eu o provoquei várias vezes, mas ele respondia monossilabicamente.
Celina perguntou à professora se Gabriel ainda precisava daquelas aulas extras, explicou que não queríamos abusar da sua generosidade. Alice respondeu que ele estava indo muito bem, principalmente na parte de redacção, pois passara a ler bastante, mas na gramática ainda havia algumas insuficiências.”
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