Pois é, relembro: HOJE, na Casa Fernando Pessoa (18.30h), com apresentação a cargo do Eduardo Pitta, vai ser lançado o meu livro A Expressão na Rede - O Caso dos Blogues (Magna Editora). Seguir-se-á um debate com moderação de Paulo Gorjão e com a presença dos bloggers Carla Hilário Quevedo, Isabela, Pedro Rolo Duarte e Vasco M. Barreto. Espero que compareça.
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Para iniciar as hostilidades, vou deixar aqui neste longo post, ao jeito de excertos mobilizadores, alguns tópicos que logo mais desejarão encontrar o seu eco:
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"Sendo franco, deve dizer-se que o termo “telemática” foi criado por Alain Minc em 1978 (a partir de “telecomunicação” + “informática”) num artigo sobre a “informatização da sociedade” e corresponde hoje, reportando-me a Claudia Giannetti, a um campo do saber que investiga a dissociação entre o corpo e a informação. O espaço telemático é assim encarado, nesta acepção como na de Sloterdijk, como uma rede em constante mobilidade que permite visionar a ideia de televiagem e – tal como sustenta Giannetti – a “transladação imaterial para qualquer sítio em tempo real”.
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"Curiosamente, quando a Declaração de Leiner e Cerf foi tornada pública, a meados dos anos setenta, o protocolo que viria a criar rede (TCP/IP) tal como hoje a entendemos, baseava-se já na lógica do End-to-End. Ou seja, tal como este último escreveria mais tarde: “A única coisa que queríamos era que os bits fossem transportados através das redes, apenas isso...”
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"Os campos hoje em dia contaminam-se, confundem-se e movem-se. A blogosfera é um desses campos que cresceu e apareceu na turbulência que reflecte e está a edificar o presente comunicacional. Subitamente, quebraram-se as paredes que limitavam os géneros e as legitimações expressivas, ao mesmo tempo que se passaram a ouvir vozes que antes não dispunham de meio onde enquadrar a sua expressão própria. Todos conhecíamos já a tradição espistolográfica, enciclopédica e opinativa que era complementada com modelos adequados à tradução do intimismo (diário, crónica, memórias, etc.). Contudo, a blogosfera (ao lado de outros meios inovadores) está a proporcionar a enunciação de tipos expressivos que não se enquadram já em nenhum destes moldes que parecem ter sempre existido."
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"Poder-se-ia até ir mais longe e reivindicar para a blogosfera um certo tipo de ‘efeito estético’ que resulta da permanente adaptação da linguagem ao multi-posicionamento das escritas na relação com outras escritas hipertextuais e com o novo meio onde se inserem. A linguagem no novo meio blogosférico é uma linguagem que acaba por flectir em tempo real, como se fosse um corpo em movimento, mas sem regras óbvias que lhe apontassem uma sintaxe apropriada, uma locução tipificada e um sentido estrito de finalidade. O jogo desta nova linguagem é a pesquisa da sua própria expressão, afinal (é esse o seu tom). Este tipo de ‘efeito estético’ que se sente na blogosfera vive sobretudo de um princípio que o design tornou presente há algumas décadas: uma permanente perturbação no que sempre foi um encaixe perfeito entre acondicionamento e finalidade."
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"Cada post tende para variadíssimos textos que nunca constrói integralmente. A geometria do registo blogosférico prefere arrumar-se no fragmento onde não existe um limite claro a que tenha que submeter-se. O post é sempre um segmento que recusou a arquitectura, mas que, ao mesmo tempo, a transformou parodicamente em leve storyboard. O post é livre e anda à deriva entre várias possibilidades que se imaginarão. Está muito para além da tradição da “Obra Aberta”, porque aquilo que o anima não é a dedução de várias finalidades possíveis por parte de um intérprete, mas sim a pura propagação na rede: dá-se a ver e logo desaparece. Reaparece, dissimula e logo aparece removido. A memória de um post confunde-se sobretudo com a simbólica de um metabolismo inacabado."
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"A sugestão e a ilusão do inacabado prendem-se também com o tempo. Mesmo as mais clássicas das obras inacabadas (seja o – tríptico cinematográfico – ‘Napoléon’ de Gance, seja a ‘Sagrada Família’ de Gaudi) não dispõem de um tempo que seja efectivamente o ‘seu tempo’. Nos posts, esta suspensão adquire recortes muito mais voláteis, na medida em que o ‘tempo real’ nunca chega a ser o tempo da edição: já passou, já refluiu – sempre – na direcção da reciclagem do olhar. É por isso que a leitura de um blogue se assume de forma oblíqua, descendente e anagramática: o olhar salta, ilude-se e sobretudo fantasia. O olhar desbrava hiatos de escrita e hiatos de não-escrita. Quando o utilizador clica e se retira, fica apenas um ritmo, um cromatismo, um ambiente, uma batida, um DJ em frenética actividade num espaço não sonoro. O tempo de um blogue não é nunca – radicalmente – o ‘seu tempo’."
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"A obsessão (a compulsão) que liga o blogger ao blogue nada tem a ver com a pulsão que religava o escritor tradicional ao seu almejado e perseguido objecto: o livro. Este último apareceu sempre como a meta de um processo mais ou menos estável que se ia testemunhando, passo a passo, rescrita a rescrita, de acordo com as metáfora da incubação e da gestação. Curiosamente, alguma tradição literária (e não só, veja-se o caso de Artaud) sempre adorou associar este processo “criativo” a uma “dor” e a um “sofrimento” terrível, em analogia com ideia de parto (o livro era, nesta simbólica, o verdadeiro “filho” do escritor)."
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"A obsessão (a compulsão) que liga o blogger ao blogue nada tem a ver com a pulsão que religava o escritor tradicional ao seu almejado e perseguido objecto: o livro. Este último apareceu sempre como a meta de um processo mais ou menos estável que se ia testemunhando, passo a passo, rescrita a rescrita, de acordo com as metáfora da incubação e da gestação. Curiosamente, alguma tradição literária (e não só, veja-se o caso de Artaud) sempre adorou associar este processo “criativo” a uma “dor” e a um “sofrimento” terrível, em analogia com ideia de parto (o livro era, nesta simbólica, o verdadeiro “filho” do escritor)."
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"Enquanto Sebald reivindicava a restituição da narrativa para enquadrar a vida num conjunto de sentidos, a rede e a casa blogosférica preferem cumprir a ininterrupta enunciação de narrativas e transformam esse acto num conjunto de sentidos que simula todo o tipo de enquadramentos e de reivindicações."
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"A blogosfera situa-se na rede virtual e processa-se a todo o momento num espaço que pode ser observado no mapa que Bill Cheswick e Hal Burch têm estado a implementar desde o ano 2000 (este interessantíssimo projecto – “The Internet Mapping Project” –, sediado desde o ano 2000 na “Lumeta Corporation”, pode ser visitado em “http://research.lumeta.com/ches/map/”). O mapa tem o fascínio da cartografia de um oceano de galáxias: há nele um encanto estético neural e ao mesmo tempo espacial e mitológico."
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"Como notou recentemente António Machuco Rosa, o protocolo TCP/IP permite ainda que a Internet seja um meio essencialmente auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, “imprevisível e não-regulado”.
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"Os efeitos do fenómeno incessante de actualização vs. desactualização na adaptação da linguagem ao novíssimo meio blogosférico são abundantes e óbvios. Citaria os seguintes:
a) Os posts tendem a condensar informação e a concretizar-se através de um tipo expressivo muitas vezes elíptico.
b) Os posts descomprometem-se face a um texto genericamente orgânico e enunciam-se de modo solto e desagregado.
c) Os posts compensam a sua brevidade através de remissões e ligações que se projectam (por precedência ou irradiação) noutros lugares da rede.
d) Os posts podem suceder-se ininterruptamente numa espécie de (nada pejorativa) fuga para a frente contra a emergência sempre actual da desactualização (às vezes em regime irónico de estimulante count down).
e) Os posts tendem a visar, ao mesmo tempo, targets muito variados, rentabilizando assim a compactação de dados que vão actualizando (e fazem-no, às vezes, com humor e sem quaisquer links).
f) Os posts obedecem amiúde a rubricas e séries predefinidas, de acordo com uma sintaxe de conteúdos que é prévia à própria transitoriedade do meio.
g) Os posts adoptam metalinguagens – textos acerca (da inscrição) de textos no programa Blogger, ou noutros programas congéneres – tentando relativar a angústia face à derrogação permanente pressuposta pela actualização vs. desactualização.
h) Os posts alimentam-se de um contraditório elementar, mais reactivo e esquemático do que sustentado e argumentativo (mesmo no caso das chamadas “micro-causas” – sobre o tema, ver micro-ensaio “H” da secção seguinte, “A casa dos blogues”).
i) Os posts agenciam a agenda pública, seleccionando, filtrando e interpretando alguns dos seus dados.
j) Os posts recorrem a realidades icónicas, googlando imagens ou, mais raramente, criando condensações de natureza poética.
k) Os posts recorrem a realidades indexicais, dirigindo sucinta e regularmente a atenção para outros posts de outros blogues, ou a textos da chamada atmosfera.
l) Os posts ancoram muitas vezes os topics (aquilo de que se fala) a simples marcas adverbiais ou de remissão directa (exemplo: “ver aqui” ou “ver mais”).
m) Os posts subsumem-se amiúde à prática mais coloquial do correio: o convite.
n) Os posts alegorizam a vida de outros blogues.
o) Os posts, por vezes, convidam tão-só a clicar.
p) Os posts tendem a contrastar a síntese produtiva com uma abundante notação de fontes."
"Os efeitos do fenómeno incessante de actualização vs. desactualização na adaptação da linguagem ao novíssimo meio blogosférico são abundantes e óbvios. Citaria os seguintes:
a) Os posts tendem a condensar informação e a concretizar-se através de um tipo expressivo muitas vezes elíptico.
b) Os posts descomprometem-se face a um texto genericamente orgânico e enunciam-se de modo solto e desagregado.
c) Os posts compensam a sua brevidade através de remissões e ligações que se projectam (por precedência ou irradiação) noutros lugares da rede.
d) Os posts podem suceder-se ininterruptamente numa espécie de (nada pejorativa) fuga para a frente contra a emergência sempre actual da desactualização (às vezes em regime irónico de estimulante count down).
e) Os posts tendem a visar, ao mesmo tempo, targets muito variados, rentabilizando assim a compactação de dados que vão actualizando (e fazem-no, às vezes, com humor e sem quaisquer links).
f) Os posts obedecem amiúde a rubricas e séries predefinidas, de acordo com uma sintaxe de conteúdos que é prévia à própria transitoriedade do meio.
g) Os posts adoptam metalinguagens – textos acerca (da inscrição) de textos no programa Blogger, ou noutros programas congéneres – tentando relativar a angústia face à derrogação permanente pressuposta pela actualização vs. desactualização.
h) Os posts alimentam-se de um contraditório elementar, mais reactivo e esquemático do que sustentado e argumentativo (mesmo no caso das chamadas “micro-causas” – sobre o tema, ver micro-ensaio “H” da secção seguinte, “A casa dos blogues”).
i) Os posts agenciam a agenda pública, seleccionando, filtrando e interpretando alguns dos seus dados.
j) Os posts recorrem a realidades icónicas, googlando imagens ou, mais raramente, criando condensações de natureza poética.
k) Os posts recorrem a realidades indexicais, dirigindo sucinta e regularmente a atenção para outros posts de outros blogues, ou a textos da chamada atmosfera.
l) Os posts ancoram muitas vezes os topics (aquilo de que se fala) a simples marcas adverbiais ou de remissão directa (exemplo: “ver aqui” ou “ver mais”).
m) Os posts subsumem-se amiúde à prática mais coloquial do correio: o convite.
n) Os posts alegorizam a vida de outros blogues.
o) Os posts, por vezes, convidam tão-só a clicar.
p) Os posts tendem a contrastar a síntese produtiva com uma abundante notação de fontes."
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"A expressão não é, pois, apenas o acomodar da linguagem no novo meio; é também o modo como ela se transforma à medida que o meio se torna cada vez mais povoado e gregário. Daí que o modo como o autor (ao mesmo tempo editor) encara o seu blogue dependa muito mais da zona de impacto das interacções do que de meia dúzia de certezas provisórias (isto é: a provisoriedade no metabloguismo de rede é inversamente proporcional ao excurso da teologia)."
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"O que torna os blogues num painel de análise fascinante e complexo é o facto de, neste novíssimo dispositivo, os pontos de vista se deslocarem de maneira incessante, independentemente das nossas escolhas (como se as bocas de cena de muitos teatros se sobrepusessem e nós fôssemos, ao mesmo tempo, actores, encenadores, pontos, cenógrafos e espectadores). Esta mobilidade é verificável em qualquer blogue, devido sobretudo à infindável circulação de dados, mas também à recontextualização ininterrupta que é própria do meio."
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"Na rede nada culmina e tudo se processa, já que nela não existem pontos nevrálgicos ou zonas de clímax. O que surge, logo se remove e reconverte. A narrativa criada pelos blogues – e por outros processos de micro-narrativa em rede – é um tipo de narrativa que, talvez pela primeira vez, não necessita de uma retórica baseada em analepses e prolepses (flash-backs e antecipações): o que conta é o registo que acompanha a mais pura imobilização do instante. O que cativa é a duração, a iminência imediata, o 'estar lá'."
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"As micro-causas integram-se, hoje em dia, num âmbito de causas mais vastas e fragmentárias que está percorrer a abertura dos novos ciberterritórios e das novas cidadanias emergentes no globário."
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"Verifica-se na rede um inevitável descolar das marcas enunciação de carácter pessoal ou subjectiva. De certo modo, está-se a assistir, hoje em dia, a um regresso ao palimpsesto de várias entradas e de várias autorias. Esta sobreposição de quase anonimatos tem mais tendência a ser activamente sincrónica – várias autores ao mesmo tempo, ou em tempos diferentes de um mesmo registo que se enuncia – do que diacrónica, no sentido em que um texto profético medieval era rescrito secularmente (e se ia adaptando às mais variadas circunstâncias históricas). Na actualidade, o evento é sempre o evento actual e, nessa medida, ele mesmo se encarrega de virtualizar as instâncias autoriais e as suas próprias circunstâncias de existência referencial, retórica ou estética. Contudo, a blogosfera acedeu, desde o primeiro momento, ao interessante paradoxo da individualização. Este paradoxo é um dos atributos mais singulares da procura expressiva que caracteriza o “globário” dos blogues, na medida em que todos os blogues se movem numa primeira pessoa, embora percorrendo sempre a mesma água, o mesmo tipo de leitura, a mesma instantaneidade de sentido, a mesma remoção da memória e a mesma inscrição de tipo síncrono (a remissão como respiração e a des-subjectivação como prática comunitária)."
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"O tom dos blogues não é apenas uma procura na amálgama incerta onde antes havia géneros, compartimentos e identidades algo forçadas. Talvez tenha sido por isso que Pedro Mexia escreveu: “Há blogues de que gosto especialmente porque não podiam ser artigos de jornal nem ensaios nem outra coisa que não um blogue”. Existe neste tipo de reconhecimento quase poético aquilo que, entre o mais emblemático Steiner e a omnipresença de Heidegger, terá levado Jorge Gonçalves a caracterizar o “tom” dos blogues: "Penso que aqui, como em grandes momentos das nossas vidas, não fazemos outra coisa senão lidar com "indefinições" e com o "não dito". Heidegger chamava a este pathos "a clara noite do nada". We have no more beginnings”.
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"Nos blogues, para além de uma auto-regulação ainda à procura de forma, o uso da linguagem não se submete a qualquer escrutínio tangível (o que não acontece na literatura, nos meios jurídicos, comerciais, económicos, etc.). Quer isto dizer que a blogosfera tipifica como nenhuma outra expressão a ideia de que é no contexto do uso – e apenas no uso, no efémero, no ‘cria e esquece’ – da linguagem que se cria o sentido. A escrita dos blogues brota do fragmento e da desintegração do corpo clássico e enuncia-se para além dos géneros, esboçando, nessa aventura diária, os seus escorços de tom."
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"No início dos anos oitenta, Richard Rorty afirmou: “há pessoas que escrevem como se só existissem textos”. Na blogosfera, fora talvez das vagas mais especializadas, esta tendência virtualizante apenas se acentuou. O mundo das escritas que se desdobram em escritas e das imagens que se desdobram em imagens tornou-se cada vez mais numa espécie de barómetro expressivo."
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"O que faz de um blogue um corpo vivo é menos este jogo de sucessão e hierarquização e mais o tipo de preenchimento que não tem uma finalidade clara (como acontece nos media clássicos). Aqui o que perdura acontece: as vozes que respiram na blogosfera, ao contrário das que convivem na redacção de um jornal, são dispositivos de enunciação que se vão enquadrando através de fragmentos de texto, independentemente da sua natureza ou categoria. A miscelânea que assim se actualiza vive aparentemente sem clímax nem desfecho, como se a intermitência realizada aliasse – embora de forma mais discreta – o já referido efeito de tranquilizante ao inevitável ímpeto e acção que pressupõem o fervor e o próprio de fluxo em estado de exaltação: continuar sempre a escrever, a postar, a permanecer. Continuar a viajar, a visitar, a revisitar e a permanecer constantemente ligado (à rede)."
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"Hoje em dia, a literatura já não corresponde à ideia que dela foi sendo formada desde há pouco mais de dois séculos no Ocidente (de Schlegel a Garrett, a Holderlin, a Musset, a James, a Proust, etc.): a arquitectura digital, o circo mundializado de imagens, a hipertecnologia e a redução – sobretudo – das Escrituras a simples escritas alteraram radicalmente as coisas. O escritor é hoje alguém que agencia ficcionalidades e não mais o fruto de uma iluminação subliminar. A sacralização dos alfabetos e dos seus brilhos, herdada desde aqueles tempos originais que Vico soube tão bem inspirar e expirar, transformou-se, hoje em dia – em primeiro lugar na rede –, num puro processamento discreto de dados, grafos e gestos.
A expressão dos blogues corresponde na contemporaneidade a uma metamorfose curiosíssima, porque está a reflectir, de modo dir-se-ia cristalino, esta transição abrupta entre um legado marcado pela sacralização da escrita e a sua mais alucinante e total dessacralização. Há três aspectos particulares que dão a esta mudança uma acuidade quase única:
1 - Os blogues constituem uma categoria expressiva muitíssimo maleável que introduziu na rede, um pouco contra natura, um quadro de clara individuação. Esta singularidade veio permitir o imediatismo da edição sem o peso das tradicionais mediações (de início, entre Deus e o profeta havia uma voz, depois um anjo, depois ainda uma exegese; na literatura, de início, houve os scriptoria, depois os editores e depois ainda a crítica). Esta remoção da mediação, apesar da necessária lógica dos hosts, dessacraliza completamente a ideia de uma forma – ou de uma escrita – que remete sempre para outrem. Trata-se de uma autonomia subitamente descoberta e ainda, por isso mesmo, sem um rosto estável.
2 - Os blogues põem decididamente em causa o espírito do ‘Livro’ como desígnio salvífico do escritor oitocentista e novecentista. Durante o fulgor moderno, a actividade do escritor era socialmente dominada por um carácter deífico. A questão atravessava regimes e modos de codificar o futuro: Hemingway, Camus, Céline ou os anónimos escritores que escreviam no “Palácio da Cultura” de Varsóvia eram, sempre, independentemente das tergiversações, “escritores”. E essa era uma marca indelével: a “declaração do escritor Y”, a “censura ao escritor Y” e o “congresso de escritores com a presença de Y” eram frases que pertenciam inevitavelmente à galeria hierarquizada do espaço público de então. O pasmo e a realização máxima dos escritores coincidiam com o surgimento do "Livro". Era o tudo ou nada de um processo que, depois, a jusante, tinha – e ainda vai tendo, embora já com alterações de significado – os seus Passos Perdidos e a sua élégance royale (prémios, recepções, inspirações políticas e outros pendores de considerada e pública moralidade).
3 - Os blogues põem em marcha uma (paradoxal) instrumentalidade poética: a linguagem visa a linguagem. Isto quer dizer que a linguagem se enraíza e se virtualiza ao mesmo tempo no quotidiano. Ou, por outras palavras, que os factos e a linguagem escorrem mimeticamente através da voragem do efémero que enuncia uns e outros (trata-se de um novo mapeamento da experiência). Nesta linha de ideias, a linguagem dos blogues e a realidade que nela se virtualiza estabelecem, instante a instante, uma permanente e mútua relação metonímica que pressupõe a ilusão de uma verdadeira imersão no quotidiano. Esta quase ‘Life live’ procede (da atitude) da crónica do dia a dia mais próximo, mas distancia-se da modalidade do diário literário, do mundanismo genérico da crónica e do “microrealismo” (J. G. Merquior) das novas poéticas pela sua radical dessacralização, já que nela não há, com efeito, um ‘exterior’ (na esfera literária, havia sempre a imanência do “seu mundo”). Na blogosfera, o ‘de dentro’ e o ‘de fora’ – que sempre pressupuseram a transcendência – comprimem-se e estendem-se hoje no caudal da procura expressiva e da linguagem (que a si própria se visa)."
A expressão dos blogues corresponde na contemporaneidade a uma metamorfose curiosíssima, porque está a reflectir, de modo dir-se-ia cristalino, esta transição abrupta entre um legado marcado pela sacralização da escrita e a sua mais alucinante e total dessacralização. Há três aspectos particulares que dão a esta mudança uma acuidade quase única:
1 - Os blogues constituem uma categoria expressiva muitíssimo maleável que introduziu na rede, um pouco contra natura, um quadro de clara individuação. Esta singularidade veio permitir o imediatismo da edição sem o peso das tradicionais mediações (de início, entre Deus e o profeta havia uma voz, depois um anjo, depois ainda uma exegese; na literatura, de início, houve os scriptoria, depois os editores e depois ainda a crítica). Esta remoção da mediação, apesar da necessária lógica dos hosts, dessacraliza completamente a ideia de uma forma – ou de uma escrita – que remete sempre para outrem. Trata-se de uma autonomia subitamente descoberta e ainda, por isso mesmo, sem um rosto estável.
2 - Os blogues põem decididamente em causa o espírito do ‘Livro’ como desígnio salvífico do escritor oitocentista e novecentista. Durante o fulgor moderno, a actividade do escritor era socialmente dominada por um carácter deífico. A questão atravessava regimes e modos de codificar o futuro: Hemingway, Camus, Céline ou os anónimos escritores que escreviam no “Palácio da Cultura” de Varsóvia eram, sempre, independentemente das tergiversações, “escritores”. E essa era uma marca indelével: a “declaração do escritor Y”, a “censura ao escritor Y” e o “congresso de escritores com a presença de Y” eram frases que pertenciam inevitavelmente à galeria hierarquizada do espaço público de então. O pasmo e a realização máxima dos escritores coincidiam com o surgimento do "Livro". Era o tudo ou nada de um processo que, depois, a jusante, tinha – e ainda vai tendo, embora já com alterações de significado – os seus Passos Perdidos e a sua élégance royale (prémios, recepções, inspirações políticas e outros pendores de considerada e pública moralidade).
3 - Os blogues põem em marcha uma (paradoxal) instrumentalidade poética: a linguagem visa a linguagem. Isto quer dizer que a linguagem se enraíza e se virtualiza ao mesmo tempo no quotidiano. Ou, por outras palavras, que os factos e a linguagem escorrem mimeticamente através da voragem do efémero que enuncia uns e outros (trata-se de um novo mapeamento da experiência). Nesta linha de ideias, a linguagem dos blogues e a realidade que nela se virtualiza estabelecem, instante a instante, uma permanente e mútua relação metonímica que pressupõe a ilusão de uma verdadeira imersão no quotidiano. Esta quase ‘Life live’ procede (da atitude) da crónica do dia a dia mais próximo, mas distancia-se da modalidade do diário literário, do mundanismo genérico da crónica e do “microrealismo” (J. G. Merquior) das novas poéticas pela sua radical dessacralização, já que nela não há, com efeito, um ‘exterior’ (na esfera literária, havia sempre a imanência do “seu mundo”). Na blogosfera, o ‘de dentro’ e o ‘de fora’ – que sempre pressupuseram a transcendência – comprimem-se e estendem-se hoje no caudal da procura expressiva e da linguagem (que a si própria se visa)."