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Quando Shakespeare destronou a Bíblia
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Harold Bloom revelou, no último número do The New York Review of Books*, que decidiu voltar a ler Shakespeare em vez da Bíblia, depois de ter regressado à vida, em Agosto, na sequência de alguns dias de internamento a recuperar de uma síncope. E a conclusão tornou-se óbvia: “Não há separação entre vida e literatura em Shakespeare”.
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Este “back to life” não podia ser mais auspicioso e actual.
Este “back to life” não podia ser mais auspicioso e actual.
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Se a Bíblia é uma imensa alegoria que desliza entre o exemplo e o vivido, o grande dramaturgo inglês foi sobretudo o organizador genial de mil tradições orais que dominavam o seu tempo. É precisamente a mesma diferença que hoje existe entre os acontecimentos que nos media se reproduzem como cerejas, criando cadeias ficcionais, apaixonadas e delirantes estilo McCann, e os acontecimentos que se constituem, no nosso dia a dia, como aparições ou vaivéns de conjuntura.
Se a Bíblia é uma imensa alegoria que desliza entre o exemplo e o vivido, o grande dramaturgo inglês foi sobretudo o organizador genial de mil tradições orais que dominavam o seu tempo. É precisamente a mesma diferença que hoje existe entre os acontecimentos que nos media se reproduzem como cerejas, criando cadeias ficcionais, apaixonadas e delirantes estilo McCann, e os acontecimentos que se constituem, no nosso dia a dia, como aparições ou vaivéns de conjuntura.
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De facto, o público actual procura as grandes metáforas da vida nas narrativas que os media vão desdobrando no quotidiano. E acontece muitas vezes que, a partir de eventos eleitos como notícia, se forma, sem grande controlo por parte dos mecanismos editoriais, uma sequência de alegações, conjecturas, rumores, contribuições, juízos e outros dados adicionais que acabam por transformar a notícia original numa verdadeira cadeia ficcional. Este processo acelerou-se e tornou-se quase normal no mundo massificado e globalizado, onde prolifera uma certa ambiguidade entre público e privado e onde os factores afectivos e passionais passaram a dominar boa parte da produção e do consumo mediáticos. Existe realmente uma óbvia correspondência entre estas novas cadeias ficcionais (por exemplo: o caso Sócrates/Universidade Independente, o caso Casa Pia, o caso gripe das aves, o caso McCann, etc.) e o mundo dos mitos da Antiguidade ou o mundo das parábolas que o sucedeu.
De facto, o público actual procura as grandes metáforas da vida nas narrativas que os media vão desdobrando no quotidiano. E acontece muitas vezes que, a partir de eventos eleitos como notícia, se forma, sem grande controlo por parte dos mecanismos editoriais, uma sequência de alegações, conjecturas, rumores, contribuições, juízos e outros dados adicionais que acabam por transformar a notícia original numa verdadeira cadeia ficcional. Este processo acelerou-se e tornou-se quase normal no mundo massificado e globalizado, onde prolifera uma certa ambiguidade entre público e privado e onde os factores afectivos e passionais passaram a dominar boa parte da produção e do consumo mediáticos. Existe realmente uma óbvia correspondência entre estas novas cadeias ficcionais (por exemplo: o caso Sócrates/Universidade Independente, o caso Casa Pia, o caso gripe das aves, o caso McCann, etc.) e o mundo dos mitos da Antiguidade ou o mundo das parábolas que o sucedeu.
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Do outro lado deste panorama, somos diariamente envolvidos por aparições dir-se-ia de conjuntura. Ao fim e ao cabo, o público adora um mundo fantasmático onde os dados se repetem e reaparecem. O prazer é hoje o mesmo que se agitava nas prestidigitações do início do cinematógrafo: são factos ou pessoas que ressurgem (Santana Lopes, Almerindo Marques e Ota/Alcochete), são as comemorações ritualizadas (o “Dia da Memória”, este ano instrumentalizado pelo estado), são os chamados dossiês correntes (petróleo, Chávez, Irão, etc.) e são ainda as aparições que visam testemunhar a simples existência (Portas numa interessante petição contra o estado “mau pagador”, ou Jerónimo a referir-se à “brutalidade” da GNR).
Do outro lado deste panorama, somos diariamente envolvidos por aparições dir-se-ia de conjuntura. Ao fim e ao cabo, o público adora um mundo fantasmático onde os dados se repetem e reaparecem. O prazer é hoje o mesmo que se agitava nas prestidigitações do início do cinematógrafo: são factos ou pessoas que ressurgem (Santana Lopes, Almerindo Marques e Ota/Alcochete), são as comemorações ritualizadas (o “Dia da Memória”, este ano instrumentalizado pelo estado), são os chamados dossiês correntes (petróleo, Chávez, Irão, etc.) e são ainda as aparições que visam testemunhar a simples existência (Portas numa interessante petição contra o estado “mau pagador”, ou Jerónimo a referir-se à “brutalidade” da GNR).
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Enfim: Bloom tinha razão. Existe uma clara distinção entre o patamar da parábola que reinventa a realidade e o patamar da conta-corrente que a amplia e transfigura (através de personagens e factos que vão e vêm, sucumbem e reaparecem).
Enfim: Bloom tinha razão. Existe uma clara distinção entre o patamar da parábola que reinventa a realidade e o patamar da conta-corrente que a amplia e transfigura (através de personagens e factos que vão e vêm, sucumbem e reaparecem).
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Para quem recupera de uma doença grave, é normal que este segundo patamar se torne mais aliciante. Mas para quem anda na adrenalina e no stress, nada melhor do que umas prestidigitações mágicas aliadas às cerejas. Como se umas e outras fossem verdade.
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*Vol. LIV, Nº 18, 22/11/07, p.40
*Vol. LIV, Nº 18, 22/11/07, p.40