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terça-feira, 3 de julho de 2007

Blogues e Meteoros - 37 (act.)

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O novíssimo caos
(crónica publicada no Expresso Online)
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Sabe-se que Berardo não é muito bem visto pela galeria vetusta que, há uns bons vinte anos, ainda se designava de modo corrente por “intelectualidade”. Nem o design negro (mitologicamente Augustus) que o acompanha bastará para suprir as mil desconfianças que, apesar de tudo, não excedem, aqui e ali, os suspiros contidos ou os embaraços mais ou menos impertinentes de alguns. Apenas Mega Ferreira, na boca do lobo, foi mais longe e bateu com a porta. Além disso, o autor de Heliventilador de Resende foi categórico: só aceitara presidir ao conselho de fundadores do Museu Berardo para dar ao “exterior a imagem de uma certa unidade de propósitos entre a Fundação (Berardo) e a Fundação Centro Cultural de Belém”. Enfim: sem que nada o fizesse prever – acreditemos no vaticínio mais ingénuo –, estalou o verniz, afundaram-se as aparências e o “right to the point”, que nunca fez escola no Portugal dos pequeninos, tornou-se subitamente em mutismo e campo de pragas. Qual arte contemporânea, qual quê! O que a antiga galeria vetusta nunca apreciou foi o cheiro dos legumes.
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Nas sociedades do novo mundo, o imponderável anda muito mais próximo da experiência quotidiana do que na Europa. Os casos revisitados nas histórias de Paul Auster são disso sintoma. Homens como Berardo, que associam a sua história pessoal a universos tão distintos como as minas, o desporto, a bolsa, a arte e os legumes, são normais nessas sociedades. De algum modo, foi o imponderável associado ao tipo de iniciativa meteórica de que Berardo é exemplo (entre nós) que estiveram na base das sociedades do novo mundo, sobretudo nas Américas e na Austrália. No velho continente, a saga das revoluções (e das evoluções) modernas pôs de lado as realezas dos muitos “Roi Soleil”, mas não aboliu de vez um certo espírito de privilégio que, entre esquerdas e direitas, sempre acabou por se projectar na figura dos “intelectuais” e dos “geniais criadores” (desses que Kant descreveu como exemplos únicos, cuja singularidade não poderia ser explicada por qualquer regra).
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É por isso natural que a entrada desabrida de Berardo na “Casa dos Privilégios” tenha gerado a ira do dono do Templo e com ele a ira sigilosa de todo o subterrâneo Antigo Regime. Não se imagine, pois, que o nosso país seja incapaz de ver a sua poética brandura ferver em pouca água. Até porque os privilégios em cena, hoje em dia, já não significam ceptro, descobrimentos, Gugunhana ou água benta, mas apenas o direito a uma presença exclusiva de alguns num palco – que desejariam – ilimitado.
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Esquecem-se que no tempo da rede se está em todo o lado, ao mesmo tempo, em muitos palcos e em muitos auditórios. E quantos mais Berardos aparecerem neste novíssimo caos, mais se irá apagando a velha e disfarçada herança dos privilégios.