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segunda-feira, 18 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 30


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: João Pereira Coutinho)
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Trabalhar para o bronze
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"Confesso um certo carinho pela sra. Ségolène Royal. Razões? A paixão tem razões que a própria razão desconhece. O facto de ser mulher ajuda. O facto de ser mulher e exemplo maior da elegância gaulesa, também. Mas é com tristeza que leio na imprensa especializada que as simpatias liberais de Ségòlene a convidam a actos de loucura. Como, por exemplo, acabar com a semana das 35 horas, o último bastião da civilidade europeia. Bem sei que os meus amigos liberais fazem um esgar de nojo e me acusam de traições várias. A França está em declínio porque os franceses não trabalham como os americanos. Trabalham menos, muito menos, e depois saem para o mundo e entregam-se à ociosidade. Deus meu, acabo de escrever isto e quase choro de inveja e raiva. Sim, eu, um workaholic sem emenda, que há vários anos sonho com o improvável: 35 horas semanais, não mais. Pior: chego a pensar que 35 horas semanais são um clamoroso abuso da nossa humanidade e que 30, ou 25, ou mesmo 20 chegavam. Eis o supremo paradoxo da condição moderna: a tecnologia fez-se para libertar os homens do trabalho; a tecnologia existe para aprisionar os homens ao trabalho.
Não admira que os resultados estejam à vista: os portugueses que entram em férias em Agosto não entram propriamente em férias. Basta vê-los: demenciais e à solta, pelas estradas do país, a correr não se sabe para onde, ou porquê. E depois, quando chegam ao destino, descarregam o carro, marcham para o metro quadrado de areia e começam, atenção ao termo, a trabalhar para o bronze. Para o português médio, as férias não se bastam a si mesmas: não são um espaço em branco onde ele pode dedicar o tempo, e o corpo, a abusos e preguiças macabras. As férias têm um propósito, e um propósito que exige a continuação do trabalho por outros meios: regressar a casa com a medalha do bronze colada ao corpo, para mostrar aos amigos da empresa e comparar. Conheço casos de gente que falou das férias como usualmente se fala de uma batalha: as horas a que acordavam (obscenas); a corrida para a praia (às vezes com frio, às vezes com chuva); a forma espartana como comiam «sandes» e outros vexames; e o regresso ao ninho, literalmente deprimidos e arrasados. E porquê?
Não tenho teorias científicas. Apenas pessoais: os portugueses são incapazes de abandonar o trabalho porque o trabalho não abandona os portugueses. E estes, pobrezinhos, são incapazes de pensar que talvez exista vida sem propósito e que as férias são a suspensão desse propósito. Não existem sítios para ir ou não ir: existe apenas um horizonte de possibilidade onde vamos mergulhando sem hora marcada. As melhores férias que tive foram repartidas entre a minha casa e o sul de Itália, e confesso que fui vogando entre ambos sem contar. Acordava e adormecia quando muitos adormeciam e acordavam. Nunca permitia refeições «leves» ou «rápidas»; os repastos eram longos, elaborados, acompanhados. Lia por mero acaso livros que acumulava por mero acaso. E a água do Mediterrâneo era o berço gentil onde embalava as horas que perdia, ou ganhava.
A primeira medida de um governo responsável seria devolver o sentido original das férias aos portugueses. E isso implicaria devolver os portugueses a um ritmo de vida mais brando e mais civilizado, permitindo que estes reencontrassem o que resta das suas pobres existências escravizadas. Ninguém necessita de oito horas diárias para carimbar papéis, aturar o chefe, os colegas, os clientes e as infinitas maçadas que acabam por desabar com violência inesperada. Duas ou três horas chegavam, se os portugueses realmente as trabalhassem. E o resto? O resto seria uma preparação informal para as férias seguintes: porque o ócio não é brincadeira. Ele exige longas horas de ócios privados, só para habituar o corpo, e o espírito, a uma posição horizontal, confortável e acordada."
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)