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sexta-feira, 1 de junho de 2007

Escavações Contemporâneas - 20


LC
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O sorriso do arquivo no tempo da rede
(hoje: Paulo Tunhas)
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O que é a amizade?*
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Na Ética a Nicómaco, Aristóteles fala longamente da amizade. A amizade (philia) é uma virtude que conhece várias espécies: pode ter origem na utilidade, no prazer ou na bondade.
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É esta última que Aristóteles considera perfeita. Traduz, nas suas palavras, «o próprio fundo do ser e não um estado acidental». É manifesta e coextensa à justiça. «São, portanto, os bons que são amigos no sentido rigoroso do termo, os outros são-no apenas por acidente e por analogia com os primeiros».
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Não há nenhuma razão para não falarmos a linguagem de Aristóteles. É pelo menos duvidoso que a experiência da amizade se haja modificado tão profundamente no curso da história humana a ponto de tornar incompreensível o que Aristóteles tem a dizer sobre ela. E o que se ganha, pelo recurso à sua descrição compensa largamente aquilo que ela nos pode fazer esquecer.
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Num ponto preciso, pelo menos, o que Aristóteles diz ilumina profundamente a experiência da amizade: a amizade é uma virtude política. É política no sentido rigoroso que Aristóteles confere a este termo e que não deve ser confundido com aquilo que as vozes degradadas do nosso tempo pretendem fazer crer que pensam quando dizem que «tudo é político». Esta última afirmação é uma mentira absoluta.
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Há uma excepção que basta: o amor. O amor não é político. É mesmo, como o soube ver Hannah Arendt num dos seus livros terríveis e demónicos, a mais antipolítica de todas as actividades.
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Mas a amizade é uma virtude política porque diz respeito a uma troca equitativa, ou pelo menos proporcional, entre os cidadãos. Regula-se por direitos e deveres. Há uma passagem muito bonita da Ética a Nicómaco em que Aristóteles encontra para as formas políticas que descreve — realeza, aristocracia e timocracia — modelos na vida privada: à realeza corresponderia a relação entre o pai e os filhos; à aristocracia, a existente entre o marido e a mulher; e à timocracia, a relação entre os irmãos. Nas suas formas puras, não degeneradas, a amizade constituiria o próprio fundamento da sociedade e garantiria a concórdia.
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Voltemos à comparação com o amor. Sem dúvida que o amor tem regras. Mas são, como se sabe, pelo menos desde a Antígona, regras completamente diferentes das regras políticas, radicalmente alheias a elas. Quando duas pessoas que se amam falam, não estão a falar a linguagem política da amizade. Estão a ter uma conversa que nada tem a ver com tudo o resto, uma conversa para a qual não há resto. O amor exprime-se na proposição: «Eu quero apenas que Tu existas», como Santo Agostinho, que amava Deus, profundamente viu. O amor é excessivamente gratuito — muito mais gratuito do que a amizade, que, mesmo na forma mais elevada descrita por Aristóteles, comporta sempre alguma dimensão de utilidade.
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É verdade que as amizades mais profundas — as que se tecem entre seres que se descobrem como funâmbulos atravessando o abismo da existência — têm, sempre, e necessariamente, uma gratuitidade próxima do amor. É, no entanto, uma verdade que não põe em causa a distinção essencial.
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A amizade compõe (quer dizer: recorta e filtra) o mundo — o amor destrói-o.
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Confundir estas coisas — a lei humana da amizade e a lei divina do amor — é realizar o terrorismo, vingando Antígona como ela não desejaria ser vingada. O gesto de Antígona ao sepultar Polínices foi um gesto radicalmente antipolítico, ditado pela sublimidade do amor. Se fosse um gesto «revolucionário» seria desprezível. Como são desprezíveis os terroristas, cujo amor abstracto e perverso pela humanidade destrói a amizade. E como são não menos desprezíveis os que os «compreendem» e perpetuam a confusão entre a lei divina do amor e a lei humana da amizade — o que se poderia muito propriamente chamar, não fora a desgraciosidade da expressão, o complexo de Antígona.
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*O Primeiro de Janeiro, 28 de Setembro de 1988
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Segundas - João Pereira Coutinho
Terças - Fernando Ilharco
Quartas - Viriato Soromenho Marques
Quintas - Bragança de Miranda
Sextas - Paulo Tunhas
Sábados – António Quadros (António M. Ferro, Org.)