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Na radiografia portuguesa que António Barreto tem apresentado, às Terças-feiras no canal 1 da RTP (“Portugal – Um Retrato Social”), há uma voz que não se limita a relatar ou a narrar. Ela também denota outros dons e não é nunca neutral (a prosódica tem faculdades parecidas com as que luzem na imagem). A voz de Barreto, profunda e um tanto melosa, aparece como dissociada da realidade que evoca. Como se já não pertencesse à festa ou ao desencanto de que dá conta. Como se os contrastes do mundo enunciado se tivessem apeado do analista que, quase funéreo, lhes enumera virtudes e uma mão cheia de desaires. Uma voz é sempre uma voz que julga. O testemunho das “angústias” e da “pouca sorte” – ontem o tema remetia para a juventude (esse rio entre ravinas, descontrolado) – reflecte-se na voz de Barreto com a luminosidade com que o pico da montanha terá observado Sísifo. O pathos, ou a paixão soterrada na experiência que já foi, sobressai ainda mais quando a cascata do presente excede a capacidade do comentário. Por outro lado, no verso da ciência sociológica, e, porventura, com a legitimidade que ela empresta à abordagem, não é raro apercebermo-nos – nós, espectadores – de que aquela voz tão excessivamente off não pára de enumerar dados óbvios, senso comum, alguns desabafos de snack, encadeamentos argumentativos mudos, generalidades. Não é sempre assim, é evidente. Mas a seriedade e o caos coabitam em todo o lado. Mesmo nos discursos brilhantes. Até mesmo no universo cristalino de António Barreto.