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terça-feira, 1 de maio de 2007

Folhetim - 6

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
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«Nunca me conformei com não ter nenhum Whistler, o amigo americano do Fantin. Partilhavam de um fraquinho quase feminino por flores, e refinaram na feitura daquele tipo de retratos que, sem se limitarem aos corpos, às caras, conseguiam meter no quadro a casa ou o ambiente de trabalho dos retratados. Sim, amigos de longos anos, por isso os juntaram agora no Museu d´Orsay. Como decerto reparou, na Homenagem a Delacroix Fantin colocou Whistler mesmo ao centro, a seu lado, ambos fazendo pendant com Manet e Baudelaire. Sim, é verdade, ainda ontem o senhor esteve diante desse quadro, mas talvez não recorde que se conheceram no Louvre, quando o jovem Fantin copiava pormenores das gigantescas Bodas de Canaã. Fantin era apagado, tímido e baixinho, sobrevivendo à custa de cópias de quadros famosos. Durante o inverno metia-se na cama a desenhar por não haver aquecimento em casa. Whistler gozava de rendimentos suficientes para lhe pagar uns consommés no Café Molière e para o convidar a ir a Londres, onde o instalou em casa de um cunhado. Em contrapartida, Fantin apresentou-o a Courbet, que havia de retratar a modelo irlandesa de Whistler em La Belle Irlandaise. Lembra-se? Era uma beleza, efectivamente!»
Houve um silêncio sonhador antes de ele retomar o fio ao que dizia: «Whistler, por seu turno, apresentara a Fantin o então parisiense Swinburne, de comprida e ruiva cabeleira romântica, que fui ver pintado por Dante Gabriel Rossetti no Fitzwilliam Museum, em Cambridge. E Swinburne, nesta dança de roda, introduziu-os no cenáculo do dito Rossetti que lhes arranjou clientes endinheirados e boémios. Fantin admirou o bem-estar e a abundância da burguesia britânica com o mesmo respeito que dedicava aos pintores do passado. Mas voltando a Whistler, que viveu parte da adolescência como um príncipe, em S. Petersburgo, onde o pai dirigia a construção da via férrea para Moscovo na dependência directa do czar, tentei informar-me se haveria por lá algum dos seus primeiros quadros. Em vão, nada à venda. Procurei até em Estocolmo, onde vou bastantes vezes para ver e voltar a ver as caveiras com coroa de louros de Christian Thum; a sumptuosa simplicidade das cerejas do Osias Beert; ou o Jan Davidsz de Heem com copos de vinho, frutos diversos, ostras abertas e até um caracol avançando de cornos ao sol na toalha vermelha; ou as tulipas com rã e borboletas do Johannes Bosschaert. Do Whistler, nada. A S. Petersburgo não fui na outra vida, ainda que negociasse com o departamento soviético de antiguidades que me vendeu obras do Ermitage. Paguei a marchands meus conhecidos, peritos em transacções por essas bandas, sempre em vão. Foi uma das minhas frustrações, tal como a de nunca ter conseguido nem uma daquelas misteriosas naturezas-mortas designadas por vanitas, que traduzem em imagens o memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris.
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(continua)
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Próximo episódio: “Não a conhece? Não perca. Lá está a ampulheta, a caveira, o mundo enquanto teatro – uma gravura na parede representa não me lembro já que arlequinada. Vale a pena a viagem, e olhe que quem lhe fala deu muita volta aos melhores museus mundiais.”