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domingo, 6 de maio de 2007

Folhetim - 11

VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria

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Calou-se, num minuto de luto pela desolação actual do seu terraço. Hesitei entre sentar-me ou dizer-lhe cara a cara que a minha curiosidade dava indícios de ter terminado. Receei que nem me ligasse e, de facto, sonâmbulo falante, voltou à carga: "Coleccionar é ser sultão não de pessoas mas de coisas. É buscar uma harmonia entre coisas de que nos sentimos protectores, ainda que elas nos sobrevivam. De cada vez que comprei uma peça, concedi-lhe e concedi-me um período de adaptação para perceber se ela e eu nos pertencíamos. Cheguei a levar este noivado a extremos inimagináveis. Mesmo que a razão me contrariasse, ninguém me convencia de que a minha colecção podia viver sem mim. Sentia que só através de mim aquelas obras, aqueles livros, aqueles móveis renasciam, que antes de me pertencerem eles vegetavam num limbo indefinido, corriam perigos indeterminados mas não menos terríveis, o perigo de se degradarem ou desaparecerem se os meus cuidados os não salvassem. Enquanto que a maioria das paixões nos ameaça com o risco do caos, a paixão de coleccionar tem a vantagem de impor um método à imensa desordem do mundo e dos objectos. Cada objecto coleccionado narra algo, traz consigo traços de quem o fez, traz alguns dos contentamentos e tormentos da sua feitura. Tormentos por vezes violentos, ainda que nem sempre evidentes. Quem se entrega ao impulso de caçar objectos belos, recorrendo a diversas tácticas e estratégias, sabe do que falo, sabe que, como qualquer apaixonado, não descansa enquanto não consegue o que quer. Acha que exagero se lhe disser que os objectos vivem na alma do coleccionador, tal como a alma do coleccionador permanece viva nos seus objectos? Não acha? Que lhe parece?"
Vencidos pelo peso do sono, os meus olhos estavam já meio fechados quando estas interrogações me caíram em cima e me obrigaram a levantar as pálpebras murmurando uns "nãos" de cortesia que o meu anfitrião decerto nem ouviu.
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(continua)
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Próximo episódio: “Dizia Perse que eu seria escritor, se insistisse na escrita. Lisonjeava-me enquanto seu mecenas, mas é verdade que li imenso.”