VANITAS
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
51, AVENUE D´IÉNA
por Almeida Faria
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No meu tempo, poucos tiveram o privilégio de olhar estes quadros. Apesar de educado à europeia, conservei hábitos do Próximo Oriente e nós, orientais, não mostramos a ninguém os nossos haréns. Um costume prudente. As minhas belezas artísticas tinham de contentar-se com o privilégio da minha companhia. Não me julgo _ nem espero que me julguem _ um tiranete à antiga. Habituei-me foi a lidar com as minhas obras de arte como um sultão lida com o seu harém, como um sábio trata os amigos mais queridos e um pai se preocupa com os filhos. Depois do trabalhão que elas me deram, do pormenor com que as estudei, com que lhes discuti ou aceitei sem discussão os preços, com que lhes devotei o melhor de mim depois de serem minhas e as coloquei nesta casa para que nunca mais fossem separadas, queria conservá-las num espaço único, num porto de abrigo qualquer onde se sentissem bem, onde fossem, em suma, felizes. Será legítimo atribuir às obras de arte o direito à felicidade? Creio que sim. Não as coleccionei para perpetuar o meu nome como coleccionador, coleccionei-as para ter o direito a vê-las de cada vez que me apetecesse. Dispondo dos meios necessários, moveu-me o princípio de que cada aquisição fosse ponderada e escolhida com o maior detalhe, desde a sua qualidade intrínseca até à autenticidade da patina. De todas elas, a mais prestigiosa será sempre a face severa e suave daquela andrógina figura de Rembrandt a que uns chamam Alexandre o Grande e outros Palas Ateneia, a tal que nasceu já armada e guerreira da cabeça de Zeus. Inclino-me para esta última tese, agrada-me que a cabeça seja de mulher, ou melhor, de deusa. Custou-me tanto esforço e dinheiro e deu-me tal prazer, que chegava a adoecer ao pensar na hipótese de que algo lhe acontecesse. Hoje está a salvo em Lisboa. Aqui, todavia, bem iluminada e sem que um vidro se intrometesse entre nós e a nobreza dela, revelava a sua suprema força de carácter. Sem as minhas obras-primas, este edifício ficou irreconhecível. E o terraço perdeu a graça, as trutas e faisões desapareceram, a falta de rega secou a terra, secou o buxo, as sebes, os vasos ficaram vazios, os meus diálogos ficaram em suspenso por falta de alguém com quem dialogar."
No meu tempo, poucos tiveram o privilégio de olhar estes quadros. Apesar de educado à europeia, conservei hábitos do Próximo Oriente e nós, orientais, não mostramos a ninguém os nossos haréns. Um costume prudente. As minhas belezas artísticas tinham de contentar-se com o privilégio da minha companhia. Não me julgo _ nem espero que me julguem _ um tiranete à antiga. Habituei-me foi a lidar com as minhas obras de arte como um sultão lida com o seu harém, como um sábio trata os amigos mais queridos e um pai se preocupa com os filhos. Depois do trabalhão que elas me deram, do pormenor com que as estudei, com que lhes discuti ou aceitei sem discussão os preços, com que lhes devotei o melhor de mim depois de serem minhas e as coloquei nesta casa para que nunca mais fossem separadas, queria conservá-las num espaço único, num porto de abrigo qualquer onde se sentissem bem, onde fossem, em suma, felizes. Será legítimo atribuir às obras de arte o direito à felicidade? Creio que sim. Não as coleccionei para perpetuar o meu nome como coleccionador, coleccionei-as para ter o direito a vê-las de cada vez que me apetecesse. Dispondo dos meios necessários, moveu-me o princípio de que cada aquisição fosse ponderada e escolhida com o maior detalhe, desde a sua qualidade intrínseca até à autenticidade da patina. De todas elas, a mais prestigiosa será sempre a face severa e suave daquela andrógina figura de Rembrandt a que uns chamam Alexandre o Grande e outros Palas Ateneia, a tal que nasceu já armada e guerreira da cabeça de Zeus. Inclino-me para esta última tese, agrada-me que a cabeça seja de mulher, ou melhor, de deusa. Custou-me tanto esforço e dinheiro e deu-me tal prazer, que chegava a adoecer ao pensar na hipótese de que algo lhe acontecesse. Hoje está a salvo em Lisboa. Aqui, todavia, bem iluminada e sem que um vidro se intrometesse entre nós e a nobreza dela, revelava a sua suprema força de carácter. Sem as minhas obras-primas, este edifício ficou irreconhecível. E o terraço perdeu a graça, as trutas e faisões desapareceram, a falta de rega secou a terra, secou o buxo, as sebes, os vasos ficaram vazios, os meus diálogos ficaram em suspenso por falta de alguém com quem dialogar."
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(continua)
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Próximo episódio: “Quem se entrega ao impulso de caçar objectos belos, recorrendo a diversas tácticas e estratégias, sabe do que falo, sabe que, como qualquer apaixonado, não descansa enquanto não consegue o que quer.”
Próximo episódio: “Quem se entrega ao impulso de caçar objectos belos, recorrendo a diversas tácticas e estratégias, sabe do que falo, sabe que, como qualquer apaixonado, não descansa enquanto não consegue o que quer.”