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terça-feira, 6 de março de 2007

Confissão estóica

Há 25 anos, sentei-me no café Ijsbreker - em Amesterdão -, estava um dia de chuva como hoje, e comecei a escrever o meu primeiro romance (viria a chamar-se Entre O Eco do Espelho). Os romances são fatias de vida e formas de expiar a carne mais aventurosa do mundo. O segundo, Cortejo do Litoral Esquecido, ao contrário da estreia, foi feito a pensar ao longe em Portugal. Navegava eu ainda à solta com a matéria dos mitos. Depois, veio o meu No Princípio Era Veneza.
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Este terceiro romance foi sonhado em ambiente de trovoada, entre um hotel onde Ruskin viveu e uma modesta casa perto do Rialto. De repente, as cidades tornavam-se personagens na minha ficção. Nem sempre a poética sufoca o curso das histórias, há mesmo momentos em que involuntariamente as ilumina. Daí que, já em Sempre Noiva, o revivalismo acabasse por tratar por tu essa luz longínqua, mas agora em diálogo com o cenário das minhas origens alentejanas.
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Em A Falha, o registo da planície permanece, mas o enredo volta a sobrevoar a candura da universalidade. O cinema entra então em jogo, ao lado das traduções e de um número variado de edições. Há saltos que se dão, cujo sentido é difuso, obscuro, por vezes delirante ao jeito de Bataille. Mas A Falha foi, também, um momento de muito prazer no plano do vivido. O sexto romance, As Saudades do Mundo, inicia um périplo de viagens que se prolonga a O Trevo de Abel. É uma fase mais efabulatória em que a trama e o carácter cintilante do plot submergem e quase se impõem a uma certa inércia onírica.
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O oitavo e o nono romances, Máscaras de Amesterdão e Inventor de Lágrimas, são invenções envolventes - lembro sempre o limbo do Verão em que os iniciei -, mas sem, porventura, aquela engenharia que faz do leitor uma espécie de holandês voador. O tempo é um leme estranho, já se sabe, e torna difícil o olhar para as nossas coisas sobretudo quando a distância escasseia. Será o caso. O certo é que, no meu décimo romance - que é lançado daqui a cerca de duas horas, E Deus Pegou-me pela Cintura -, decidi recomeçar tudo de novo. Não só o escrevi à mão, como nele defini um tipo de montagem sem precedentes, para além de ter convertido o enredo na própria iminência da actualidade (disputando-a mesmo). É sabido que foi ainda acompanhado por um movimento performativo de antecipação ficcional e por uma sequência de filmes (para o You Tube). Um recomeço.
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Neste dia de lançamento, a minha querida tia Maria do Carmo Amaro Carmelo faleceu. Estarei daqui a pouco na cerimónia do El Corte Inglés, mas depois irei ter com ela - e com a sua memória - a Évora. Há sinais que valem pelo silêncio e pelo recato de todas as histórias. E como ela, a minha Tia Carmo, adorava o José Totentino Mendonça, termino este post com um poema seu que lhe dedico:
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A presença mais pura
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Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»
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A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um "não esquecer" fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»
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(José Tolentino Mendonça, de A Que Distância Deixaste o Coração, Anos 90 e agora - uma antologia da nova poesia portuguesa)
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Sim, acrescentarei eu em negrito: porquê esconder a dor, num dia destes? É bom, num dia destes, ter um blogue. Tão bom como ler e provar o fausto das estrelas que cantam, ocultas, sobre o acinzentado triste do céu.