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sábado, 13 de janeiro de 2007

Blogues e Meteoros - 13

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O guarda-chuva e o riso
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Lembro-me que o ano de 1970 constituiu para mim um anúncio exaltante. O número que baptizava o ano aparecia como um alinhamento insólito de algarismos. Jamais acreditei em milagres, mas a contagiante sonoridade do número setenta – longe estava eu ainda de conhecer a tradução dos Setenta – escalou pela minha imaginação como que a sugerir a iminência de uma metamorfose. Tudo por causa de um número nunca antes soletrado. A festa tinha lugar num vasto salão sobre o Tejo de Vila Nova da Barquinha, era o meu avô materno ainda vivo, um republicano que tinha sido Chefe das Finanças nos Alentejos, nas Beiras e também na baía de Lagos durante a guerra onde, dizia, passavam comboios de cruzadores, contratropedeiros, corvetas e muitas outras naus catrinetas sem fim na peugada das tropas do eixo.
Ao longo dos anos setenta, habituei-me à nova dicção, de início bem menos familiar que a do meu avô (que sublinhava os anos vivos do cinematógrafo até ao arco de penumbra dos anos trinta) e que a dos meus pais (que pairava nos males da guerra e também nos promissores fifities que me veriam nascer). Cada década acaba sempre por corresponder a uma escala musical que se esgota, ao insuflar de um balão que depois se esvazia, ou a um soufflé que se expande no forno até abrir brecha. Isso mesmo: uma brecha que não nos chega a preparar, como deve ser, para a década seguinte. Foi essa radical inércia que me fez sentir estrangeiro face ao número 70, tal como se anunciava, imperial, naquele eufórico fim de dia de 31 de Dezembro de 1969, estava eu ainda no sexto ano do Liceu.
Acontecer-me-ia, depois, algo parecido nos últimos dias de Dezembro de 79, de 89 e de 99. Mas com um impacto cada vez mais leve. O que, no início, era apenas falta de hábito converteu-se depois numa indiferença que se vestia de um repetido afã patético. Era sempre outro e outro réveillon que se limitava a citar a arte com que Bataille, um dia, tão bem caracterizou o riso (Experiênia interior, 1943 e O limite do útil, 1945): vinha o autor por uma rua e, sem qualquer necessidade, viu-se subitamente de guarda-chuva aberto. Era como se o "bem estar" e uma prodigiosa "sensação de impossibilidade" se juntassem e fizessem o riso tomar conta do corpo. E Bataille, concluía: Na altura, (eu) “não era na verdade senão o riso que me tomava”.
É assim que – com uma brevíssima pausa no meu blogue – acabei de entrar no ano de 2007: sem as histórias do meu avô, sem a imagem inaudita de um conjunto de algarismos por soletrar, mas tão-só com um imenso guarda-chuva aberto e a rir, a rir, a rir. Como se a inércia fosse afinal a mais comovente invenção das nossas vidas.