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terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Os meus romances deste ano

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Esta resenha vale o que vale, porque – geralmente – só consigo ler romances quando não estou a escrever e, sobretudo, se estou em férias das actividades ensaísticas (esse espaço que torna o mundo numa fantasia desprevenida). Seja como for, há romances que este ano me ficaram na pele – nem todos de 2006 – e há romances que este ano não consegui devorar (ou em que não consegui sequer entrar). Façamos, pois, o breve percurso.
O último Houellebecq tocou-me bastante e fez-me sonhar com um futuro ensaio sobre o território pós-humano. Creio que o génio do bretão reside em descarnar a ferida com um realismo e com um vitalismo extremamente actuais. Como curiosidade de uma certa relação com o corpo, não esqueço o facto de a tradutora, Isabel Aubyn, ter preferido sistematicamente, ao longo deste romance de Houellebecq, A Possibilidade de uma Ilha, o verbo “menear” e o substantivo “felação”, respectivamente, a “abanar” (a cabeça) e a “broche” (no sítio do costume).
Em segundo lugar, relevo O Mar do irlandês John Banville. Um bom livro, simples, mas de narração agilíssima. A história coloca em cena um protagonista claramente derrotado pelo objecto da sua própria memória. Como se as lembranças que se acamam no romance desarmassem o narrador face ao narrado: uma melancolia filha da desistência e não tanto do brilho ácido de um pranto (à Houellebecq, por exemplo) que saberia bem acompanhar. Seja como for, há poucos livros em que a poética da minúcia e um realismo solto e até mordaz acasalem de modo tão sereno.
Shalimar O Palhaço de Salman Rushdie é, com toda a certeza, um dos grandes livros do ano. Depois de o ler, voltei a concordar com quem afirma que apenas a imensa cobardia do Ocidente afasta Rushdie do Nobel. Nada mais. A entrada do romance reivindica o literário (a altivez adjectiva, o imperativo descritivo dos personagens, as interessantíssimas espirais narrativas, etc.) sem o dizer. É possível que as deambulações nos conduzam - aqui e ali - a uma certa exaustão, mas o modo como o desenlace é trabalhado desde o início, a par das pequenas-grandes sagas do terrorismo das últimas décadas, superam esses acenos de fôlego.
Outro romance que li de rajada, e que coloca como personagem principal o grande Fiodor, foi O Mestre de Petersburgo de J.M. Coetzee. Camus poderia ter escrito um outro Mito de Sísifo, se tivesse lido este livro. Tudo porque, no final do capítulo 9, Fiodor responde à filha da anfitriã do seguinte modo: "Ninguém se mata, Matriosha. Uma pessoa pode pôr a vida em perigo, mas não se pode verdadeiramente matar" (...) ou seja: "pergunta a Deus: Salvar-me-ás?; e Deus - neste caso - deu-lhe uma resposta. Deus disse: Não. Deus disse: Morre". No fundo, mesmo no suicídio, existe um espaço de possibilidades que se situa entre a situação de risco criada e a natureza, ainda que bizarra, de uma gratidão que se identifica com o próprio desfecho.
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De raiz bem diversa, O Fardo do Amor de Ian McEwan foi outra história excelente a que me entreguei em 2006, embora, deva confessar-se, já conte uns bons nove anos de vida. Os méritos do romance advêm da arquitectura do plot e da engrenagem ficcional que faz revolutear factos e situações inauditas. Tudo começa com um incidente puro e duro de onde depois emerge a força dos mal-entendidos e a singular inverosimilhança de um psicopata. Talvez o desenlace pudesse acusar uma toada um pouco mais abismada, ou tão-só inesperada.
Por fim, um Kundera que sempre me passou ao lado: A Ignorância (de 2000). Trata-se de um romance que toca todos aqueles que repartiram a sua vida por diversos lugares (o leitmotiv põe em jogo dois checos que, depois do fim do comunismo, procuram em vão a mitologia do Nostos, ou seja, da cruel miragem de um regresso dourado).
No lado negativo das minhas leituras romanescas, sublinho A Conspiração contra a América de Roth que li no início do ano. É o exemplo de uma grande ideia que depois não luz. Li-o e apaguei-o quase ao mesmo tempo. Também o romance biográfico Autor, Autor de David Lodge me cansou, embora por outras razões de que destacaria a aridez da linguagem e pesaroso tom ‘estilo Família Bellamy’.
De lado, semana após semana, foi ficando – na companhia de muitos outros, e se calhar injustamente – Donna Tartt. A ela voltarei, logo que puder.