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quarta-feira, 26 de julho de 2006

Tragédias de uma guerra intemporal (act.)


A (ex)posição de Israel no Médio Oriente
e
Entre 2004 e a Primavera passada, várias vezes reatei o tema do 500º centenário do “Progrom” de Lisboa (o grande massacre de 1506 contra a comunidade judaica). Nunca fiz um balanço de toda essa intervenção, nem farei, pois há desígnios que não cabem nesse tipo de epílogos. Mas é curioso como o tema foi sempre um tema difícil, profundamente incómodo, em certos meios exótico e desnecessário, noutros ainda motivo para três linhas de breve e fugidia memória.
Como se Portugal não fosse parte da carne dessa diáspora que, ao mesmo tempo, partiu e por cá se disseminou com outros nomes e ecos. Há regimes que quiseram à força apagar partes da sua história e conseguiram-no. Aliás, toda a história moderna é, passe a cientificidade da causa, uma calculada sintaxe de factos que cada presente posiciona de acordo com perspectivas geralmente pouco inocentes (lembro-me da imagem de Portugal com que fui educado desde tenra idade). Os casos mais extremos dessa instrumentalização de eventos parecem sempre pertencer aos outros (a outros regimes, a outras eras, a outros países, etc.) e não a nós (imaginariamente sempre centrados sobre a nossa férrea identidade). O curioso é que, no caso do “Progrom” e da sedimentação da cultura judaica no magma português, a matéria do tabu se tornou intemporal e quase se transformou, até aos dias de hoje, num mito invisível e intocável.
Se o caso dos “mouros ocupantes” foi sendo deslindado na Academia, nas últimas duas décadas (hoje entende-se melhor o significado do Califado Omáiada ibérico nas relações entre ocidente e oriente e superou-se, de algum modo, a ideia romântica da ocupação vs. reconquista cristã), já o caso judaico se foi impondo persistentemente através de uma indiferença e de um silenciamento que, em meu entender, denotam sinais evidentes de intolerância. Existe uma clara má fé (não pronunciada, não dita, não discutida) na relação entre a auto-imagem dos portugueses e aquilo que é a sua especularidade história. Como se essa relação apenas se mantivesse sã, se depurada de alguns dos seus episódios. O pior é que, quando tais episódios são parte do próprio corpo – de uma matéria que é íntegra à cultura e à memória colectivas -, o vestígio manter-se-á vivo faça-se-lhe o que se fizer: nada o poderá eliminar. O nosso lado judaico – todos somos, de alguma maneira também, judeus (queiramo-lo ou não) – é essa parte de um corpo que a má consciência lusitana tende a remover e a elidir há séculos, de tal modo que o gesto que procede a esta insistente remoção já se tornou num gesto quase imperceptível e até involuntário.
Quando vivi na Holanda (durante uma década) e quando estive em Israel, lembro-me do modo como os judeus encaravam Portugal: uma espécie de nostalgia comovente a que faltava a carne do objecto de amor. Uma memória feita de uma experiência de séculos a que se juntavam amiúde evocações surpreendentes, sintomas de uma convivialidade perdida, indícios de uma saudade ainda pouco partilhada e até algumas marcas da língua. Este outro lado do mesmo fenómeno – um desencontro histórico que apenas uma tragédia sem explicação pode explicar – é tão revelador da intensidade da ligação entre o judaísmo e Portugal quanto o é o violento propósito de apagar e diluir parte de nós próprios.
Um estranhíssimo – e, repito, muitas vezes involuntário – incómodo persegue a conduta com que o nosso país se digladia com o seu passado de influência e ainda não de periferia. A questão judaica vive e respira precisamente aí, no coração dessa ferida: é no momento em que os judeus são ameaçados, perseguidos e expulsos que o corpo português também começa a fenecer. Uma tragédia arrastou a outra, ou foi, pelo menos, dela o sinal maior e mais gritante. Os frequentadores da sinagoga de Amesterdão, os Coutinhos, os comerciantes de Antuérpia e os fundadores de Nova Iorque sabem que assim foi. Um corpo fragmentado é sempre um corpo trágico. Do lado de cá, em Portugal, apagou-se essa imagem a pouco e pouco; do lado de lá, no mundo judaico, foi-se antes vivendo o fruto da nostalgia embora sem qualquer âncora.
Nos últimos 48 anos, sempre que Israel precisou de recorrer à guerra (desde o ‘Dia Um’ da sua independência), e apesar de todos os excessos e erros que são próprios da sobrevivência, nunca houve em Portugal um entendimento cabal e minimamente racional do facto (refiro-me ao “mainstream”). Israel foi quase sempre mal visto, foi quase sempre analisado como a parte a diabolizar, foi quase sempre percebido como a parte que constituía o problema. Afinal, já o constituía há muito, como vimos. O fenómeno, aliás, atravessa a direita e, mais recentemente com uma rara acuidade, a esquerda. Até quando?
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p.s. - Na casa dos afectos à esquerda, o Bruno Sena Martins é um caso de elevação, de raciocínio rico e de real capacidade de relativação de dados. Quando a "interpretose" se sobrepõe à "interpretação" (a guerra de Sontag), nem sempre é fácil esta atitude cuidada. Tenho acompanhado, naturalmente, os seus textos (de referir especialmente este) e as polémicas em curso no Avatares (com muitos vasos comunicantes com as que se têm revelado aqui no Miniscente). Gostava de saber o que ele pensa desta radiografia à nossa carne (quer quanto à intensidade histórica - tímica e fórica -, quer quanto às "derivas rizomáticas" da identidade). Abraço.
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p.s. - E eis como as polémicas no Miniscente se tornam em base de uma "síntese" de cariz "astrológico " (ver análise em Postais de Novalis).