"É raro encontrar um post desta natureza"
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No passado dia 11 de Junho, o Portugal dos Pequeninos cumpria três anos de vida. Os meus parabéns, embora razoavelmente atrasados.
Li o post que celebrava o facto, “Sem tecto, entre ruínas”, e percebi de imediato que aquilo não era apenas um testemunho. Pensá-lo seria transformar o blogue em algo de meramente instrumental, quando ele aparecia ali como uma imersão partilhada num espaço confessional bem mais sentido e profundo.
No texto, existe uma relação constante entre acontecimentos muito intensos que marcam três anos de vida e uma presença tutelar, claramente autorial. Mas não se pense, no entanto, que essa relação não é tão importante quanto os acontecimentos relatados ou a presença enunciada. Como João de S. Tomás (e mais tarde Locke) deixou claro, a consciência de que existe uma relação independente do agenciamento e dos processos que conduzem à significação é um dado óbvio e tácito. E no caso deste singular post de balanço (“todo um programa”, segunda Eduardo Pitta), a relação acaba por confundir-se com o blogue, quer na sua autonomia enquanto painel expressivo (e falante), quer na articulação que tece com a presença que se atreve “a falar exclusivamente na primeira pessoa” e com a “circularidade” dos factos. Esta consideração do blogue como parte de uma voz que ‘diz’ é muito interessante na perspectiva do “tom” (que tenho caracterizado – insisto - como a procura de uma nova correspondência entre os dispositivos comunicacionais tradicionais e a arquitectura emergente da rede).
Li o post que celebrava o facto, “Sem tecto, entre ruínas”, e percebi de imediato que aquilo não era apenas um testemunho. Pensá-lo seria transformar o blogue em algo de meramente instrumental, quando ele aparecia ali como uma imersão partilhada num espaço confessional bem mais sentido e profundo.
No texto, existe uma relação constante entre acontecimentos muito intensos que marcam três anos de vida e uma presença tutelar, claramente autorial. Mas não se pense, no entanto, que essa relação não é tão importante quanto os acontecimentos relatados ou a presença enunciada. Como João de S. Tomás (e mais tarde Locke) deixou claro, a consciência de que existe uma relação independente do agenciamento e dos processos que conduzem à significação é um dado óbvio e tácito. E no caso deste singular post de balanço (“todo um programa”, segunda Eduardo Pitta), a relação acaba por confundir-se com o blogue, quer na sua autonomia enquanto painel expressivo (e falante), quer na articulação que tece com a presença que se atreve “a falar exclusivamente na primeira pessoa” e com a “circularidade” dos factos. Esta consideração do blogue como parte de uma voz que ‘diz’ é muito interessante na perspectiva do “tom” (que tenho caracterizado – insisto - como a procura de uma nova correspondência entre os dispositivos comunicacionais tradicionais e a arquitectura emergente da rede).
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Esta ‘voz que diz’ reparte-se sempre, ao longo de todo o post, entre a evocação de factos, a omnipresença de um “eu” quase empírico e a tal relação que se confessa nos vários planos de que é afinal feito o blogue. Trata-se de uma voz que agrega estes vários segredares de um mesmo pathos e que, logo no início, se ocupa da experiência da morte do pai (do blogger). Esta vivência do sofrimento surge directamente associada com os primeiros dias do blogue: “Ajudou-me a relativizar tudo o resto e a perceber, por fim, para onde é que todos caminhamos”. O relato relevará depois a meteórica passagem do blogger (João Gonçalves) pela direcção do Teatro Nacional de São Carlos. A prematura saída do cargo assume no relato a força de uma avalanche que se projecta com violência nos hábitos de infância, acentuando o ambiente de disforia: “Por isso, na fase inicial destes 'pequeninos', dei tanta atenção à chamada "cultura.”
Numa segunda fase, os Pequeninos começaram a interessar-se mais pela chamada política "geral" da nação e, intermitentemente, pela "global”. A saga das presidenciais domina esse período mas não o esgota, na medida em que o blogger avisa no parágrafo seguinte: “Um propósito destes 'pequeninos' foi sempre o de Gore Vidal, "I am not my own subject"”. A individualização não é, pois, apenas uma questão de ‘topic’; é-o sobretudo de escolha e de objectivação. Contudo, a perspectiva do que aparece disposto para além desse “subject” é realisticamente aterradora e tem ‘o país de fátima Felgueiras’ como leitmotiv. Leia-se: “Se tivesse de escrever a "história" destes três anos, ela pouco mais 'falaria' do que de um imenso fracasso. Até os "pequeninos" se ressentiram disso. Silêncios comprometidos, cumplicidades e solidariedades inesperadas, amizades desconfiadas, outras desfeitas, incompreensões, eis o preço pago pelos 'pequeninos' pela sua liberdade intransigente”.
Esta ‘voz que diz’ reparte-se sempre, ao longo de todo o post, entre a evocação de factos, a omnipresença de um “eu” quase empírico e a tal relação que se confessa nos vários planos de que é afinal feito o blogue. Trata-se de uma voz que agrega estes vários segredares de um mesmo pathos e que, logo no início, se ocupa da experiência da morte do pai (do blogger). Esta vivência do sofrimento surge directamente associada com os primeiros dias do blogue: “Ajudou-me a relativizar tudo o resto e a perceber, por fim, para onde é que todos caminhamos”. O relato relevará depois a meteórica passagem do blogger (João Gonçalves) pela direcção do Teatro Nacional de São Carlos. A prematura saída do cargo assume no relato a força de uma avalanche que se projecta com violência nos hábitos de infância, acentuando o ambiente de disforia: “Por isso, na fase inicial destes 'pequeninos', dei tanta atenção à chamada "cultura.”
Numa segunda fase, os Pequeninos começaram a interessar-se mais pela chamada política "geral" da nação e, intermitentemente, pela "global”. A saga das presidenciais domina esse período mas não o esgota, na medida em que o blogger avisa no parágrafo seguinte: “Um propósito destes 'pequeninos' foi sempre o de Gore Vidal, "I am not my own subject"”. A individualização não é, pois, apenas uma questão de ‘topic’; é-o sobretudo de escolha e de objectivação. Contudo, a perspectiva do que aparece disposto para além desse “subject” é realisticamente aterradora e tem ‘o país de fátima Felgueiras’ como leitmotiv. Leia-se: “Se tivesse de escrever a "história" destes três anos, ela pouco mais 'falaria' do que de um imenso fracasso. Até os "pequeninos" se ressentiram disso. Silêncios comprometidos, cumplicidades e solidariedades inesperadas, amizades desconfiadas, outras desfeitas, incompreensões, eis o preço pago pelos 'pequeninos' pela sua liberdade intransigente”.
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Esta alusão directa a um dado “preço a pagar” atesta o facto de a mediação entre o ónus dos factos e a insistência da presença revisitada não ser pacífica. O “eu” empírico torna-se aqui personagem, no modo como se pressente em luta feérica com obstáculos que se agigantam: físicos, afectivos, expressivos, profissionais, emocionais, etc.. Mas esse espectro de trincheira é contraposto, algumas linhas a seguir, através da mobilização de um dos factos mais comuns da blogosfera, o lúdico: “Os 'pequeninos' existem porque me dão gozo e porque há por aí centenas de leitores anónimos que têm sido a minha mais fiel companhia silenciosa, sejam eles detractores ou 'apoiantes'.”
Esta alusão directa a um dado “preço a pagar” atesta o facto de a mediação entre o ónus dos factos e a insistência da presença revisitada não ser pacífica. O “eu” empírico torna-se aqui personagem, no modo como se pressente em luta feérica com obstáculos que se agigantam: físicos, afectivos, expressivos, profissionais, emocionais, etc.. Mas esse espectro de trincheira é contraposto, algumas linhas a seguir, através da mobilização de um dos factos mais comuns da blogosfera, o lúdico: “Os 'pequeninos' existem porque me dão gozo e porque há por aí centenas de leitores anónimos que têm sido a minha mais fiel companhia silenciosa, sejam eles detractores ou 'apoiantes'.”
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O texto termina com uma auto-imagem proclamadora, mas sempre íntima e empaticamente associada ao blogue: “Como Vattimo, no entanto, sou um 'mezzo credenti' que, contra toda a esperança, confia no amor de Deus, na Sua 'caritas'. Não confio absolutamente em mais nada e em ninguém. O 'Portugal dos Pequeninos' entra, assim, no seu quarto ano de existência. Na belíssima expressão de Raul Brandão, sem tecto, entre ruínas”. É raro encontrar um post desta natureza onde o blogue não deixa, em nenhum momento, de ser parte do fôlego com que a pele expressiva respira e se dá a conhecer ao “outro”, mesmo quando nele não crê.
O texto termina com uma auto-imagem proclamadora, mas sempre íntima e empaticamente associada ao blogue: “Como Vattimo, no entanto, sou um 'mezzo credenti' que, contra toda a esperança, confia no amor de Deus, na Sua 'caritas'. Não confio absolutamente em mais nada e em ninguém. O 'Portugal dos Pequeninos' entra, assim, no seu quarto ano de existência. Na belíssima expressão de Raul Brandão, sem tecto, entre ruínas”. É raro encontrar um post desta natureza onde o blogue não deixa, em nenhum momento, de ser parte do fôlego com que a pele expressiva respira e se dá a conhecer ao “outro”, mesmo quando nele não crê.
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O que há de novo para a questão do “tom” neste post é a adequação da linguagem a um processo (passado) onde o meio colocado à disposição do blogger é, ele mesmo, um fio que acaba por compor essa linguagem. A ideia de uma mediação fria e aparentemente ilimitada - a arquitectura telemática – torna-se aqui numa espécie de carne na carne telepática (para reutilizar a expressão de Sloterdijk). É assim que aflora o que se diz, o que se pronuncia e o que vai sendo revelado. O segredo desta correspondência assentará numa crença involuntária: a de que o blogue é, de facto, uma película quase vocal ou um instrumento suplementar que pertence ao corpo protético do blogger (aquele corpo cuja propriocepção se alarga aos limites das imagens de imagens que compõem a rede). A autenticidade da voz criada por João Gonçalves neste post dá corpo a esta ciberficcionalidade e vale por isso mesmo. Aqui não é preciso explicar o que é real e o que é virtual, na medida em que ambos os feixes deslizam na mesma camada de neve, ao sabor (às vezes melancólico) dos hiatos e factos que são o escorço da narrativa.
O que há de novo para a questão do “tom” neste post é a adequação da linguagem a um processo (passado) onde o meio colocado à disposição do blogger é, ele mesmo, um fio que acaba por compor essa linguagem. A ideia de uma mediação fria e aparentemente ilimitada - a arquitectura telemática – torna-se aqui numa espécie de carne na carne telepática (para reutilizar a expressão de Sloterdijk). É assim que aflora o que se diz, o que se pronuncia e o que vai sendo revelado. O segredo desta correspondência assentará numa crença involuntária: a de que o blogue é, de facto, uma película quase vocal ou um instrumento suplementar que pertence ao corpo protético do blogger (aquele corpo cuja propriocepção se alarga aos limites das imagens de imagens que compõem a rede). A autenticidade da voz criada por João Gonçalves neste post dá corpo a esta ciberficcionalidade e vale por isso mesmo. Aqui não é preciso explicar o que é real e o que é virtual, na medida em que ambos os feixes deslizam na mesma camada de neve, ao sabor (às vezes melancólico) dos hiatos e factos que são o escorço da narrativa.
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P. S. - 1 - Obrigado à Rita Ferro Rodrigues por ter escrito na Única desta semana (p.104): "O melhor ponto de partida para iniciar uma abordagem do panorama da blogosfera é dar uma vista de olhos pelo miniscente...". Etc.
P. S. - 2 - Muito se gritou e festejou na tarde de sábado. Agora imagine-se que era com o meu Benfica! (de certeza que teria mais febre do que tenho - a sério - hoje).
P.S. - 3 - O que terão pensado de Ricardo os apólogos de Baía e todos os fanáticos torcedores da derrota de Portugal que bebem brandy Pinto da Costa?
P.S. - 4 - O desafio liberal é hoje saber responder à seguinte pergunta: o que fazer quando a Marselhesa ressuscita deste modo tão decidido (qual remodelação governamental, qual quê!)?