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quarta-feira, 5 de julho de 2006

Memórias de Sua Majestade e da França

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Há quarenta anos, tinha quase 12 anos. A televisão - julgo que era National - dominava a sala-de-estar e tinha um aspecto dócil. Era um cubo bastante razoável com ecrã orgânico saliente, botões avultados e pares na parte inferior e um óptimo som. O preto e branco contracenava com a voz sempre distante do locutor e com as avarias que, de vez em quando, interrompiam a emissão. Durante os anos sessenta - e final de cinquenta -, a placa que surgia nesses casos era sempre a mesma: "Pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos". A música de fundo pontuava então com a imobilidade das letras e era raríssimo imaginar sequer uma voz off que desse conta fosse do que fosse ao auditório. O tempo televisivo era um tempo teleológico, meio mágico, onde a espera superava qualquer cálculo de impaciência. O mundo encenava-se, de um certo ponto de vista, como um nicho mais aprazível.
Wembley era, nesse tempo, e desde 1923, o mais emblemático dos estádios do globo. No dia que hoje evoco, Portugal entrava em campo lado a lado com a Inglaterra. Estávamos, como nesta quarta-feira dia 5 de Julho (dia em que o meu irmão faz anos - parabéns Zé!), nas meias-finais do Campeonato do mundo.
Lembro-me que a sensação (para mim que era ainda uma criança) tinha o seu quê de cristalino: Portugal não poderia vencer e isso era inevitável. Já face à Coreia, tudo aquilo tinha sido natural pois eles eram uns espectros que não eram bem deste mundo; quanto ao Brasil, tudo aquilo havia sido o corolário de uma geração de benfiquistas que já havia mostrado ao mundo o que valia; quanto ao futuro jogo contra a URSS (apuramento do terceiro e quarto lugares) a coisa também era certa, porque essa canalha - já se sabia - não podia de qualquer maneira subir ao podium. Agora a Inglaterra, não. Era bonito vermos Portugal a poder entrar naquele relvado, mas era excessivo imaginar a derrota do Império Britânico, para mais diante da rainha e de todo aquele séquito que era, afinal, o fiel herdeiro da nossa ideia de civilização (para nós, naquela casa, Portugal era realmente um país muito pouco civilizado).
Estou a tentar traduzir, com a máxima autenticidade, o que sentia e o modo como vi o desafio de há quarenta anos. Lembro-me como se fosse hoje. E, ao fim e ao cabo, aconteceu tudo precisamente de acordo com as minhas sempre silenciosas (mas partilhadas) expectativas. Perdemos - Portugal perdeu - com a cabeça levantada e as lágrimas de Eusébio mais não fizeram do que dar corpo à famosa perdição marítima do poema de Fernando Pessoa.
Hoje o país é outro e é outro o sofá, a televisão, o adversário e o mundo. A França, nesse tempo, era uma coisa meio poética, meio chique (chic), meio revoltosa (inquiétante) e sobretudo meio paradise de beauté. Se o jogo, nesse ano de 1966, fosse um França-Portugal jogado no Parque dos Príncipes, creio que não teria sentido nada do que senti ao ver o tal Inglaterra- Portugal de Wembley. A França era, na altura, mais terra de baladas, de Channel, de barbas poéticas, de vozes melancólicas e existenciais. Mas não tinha o legado da Inglaterra (fosse o que fosse que o "legado" quisesse dizer a uma criança de onze anos). A verdade é que eu já tinha começado a estudar Francês (no primeiro e no segundo anos do liceu), mas sentia que a grande tentação era realmente começar a estudar Inglês (o que só aconteceu uns meses após o mundial, i.e., no início do ano lectivo de 1966/67). O desprendimento face à França já era nesse tempo aquilo que é hoje. Ou seja, em bom futebolês, uma presa desejável e fácil - se possível - a abater. Esperemos que o wishful thinking (ou o mais puro e intuitivo wishful feeling) hoje se concretize. Nem seria despropositado, pois não?
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p.s. - Parabéns, Paulo Gorjão, pelo terceiro aniversáro do Bloguítica. Começámos - nesta vida - com onze dias de diferença!