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terça-feira, 6 de junho de 2006

O “tom” dos blogues - 26

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A criação de personagens corresponde a um percurso (ou a um destino) singularizante que organiza o sentido das narrativas. Os personagens começaram por incorporar a narrativa transformando-se em heróis indomáveis e quase divinos. Depois foram descendo à terra, tentando venerar, interpretar e imitar os heróis cujo excurso se situava nas “Escrituras”. Mais tarde, houve tempo para sonhar com uma autonomia errante mais ou menos terrena (Voltaire, Mercier, Diderot, Swift, Verne, etc.). Um dia, tornaram-se anti-heróis enclausurados nas malhas urbanas, na interrogação do nexo das coisas ou na metamorfose mais imprevista. Houve ainda eras nevoentas em que os personagens quase foram suprimidos por teorias intolerantes que os reduziam a funções de um motor impessoal. Com a rede, a vida dos personagens chegou a soluçar. Qualquer inscrição mais marcadamente personificada parecia já definitivamente condenada a um mero vértice entre conectividades. Até que na blogosfera reapareceu a febre do personagem, embora com contornos e características que pouco, ou nada, têm a ver com o modo como sempre foi compreendida a ideia de personagem (pelo menos desde o advento romântico, quando a ideia de criação e do seu “génio” penetraram no então emergente caudal literário).
Tradicionalmente, as acções expostas numa dada sequência narrativa sempre denotaram a presença, poder-se-á dizer decisiva, de um qualquer tipo de agente (o personagem). Contudo, neste agenciamento sempre se separaram máscaras muito diferenciadas: a empírica (confundida com o autor de carne e osso realmente existente) e a textual, ou, por outras palavras, o modo específico como uma linguagem, uma escrita e um sistema de possibilidades (um “meio”) eram apropriados. A criação de enunciados (posts) seria já um resultado claro do trabalho do autor textual, ainda que reflectisse, directa e indirectamente, marcas próprias do sujeito real ou empírico.
De qualquer modo, estes planos foram e são ainda planos completamente diferentes: num existe um blogger com quem se almoça ou se janta, no outro existe uma arquitectura que efabula, que tira partido e que constrói um “tom”, isto é, que leva a cabo o constante ajustamento e apropriação do – neste caso – meio blogosférico ao serviço de uma expressão e da transmissão de uma força elocutória (o que há a dizer). Para além desta separação clássica - e ao contrário do que aconteceu noutras tradições (géneros lírico ou dramático) -, na narrativa sempre existiu uma instância que ia concedendo o discurso a outrem (o narrador). Ao encarnar a regência do relato, o narrador jamais se confundia com o autor textual ou com o autor empírico. Ao invés, sempre se caracterizou como sendo uma construção autónoma, fictícia, associando-se à voz de um personagem (na primeira pessoa) ou simulando uma espécie de omnipresença divina (geralmente na terceira pessoa).
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Com excepção da separação (embora nunca taxativa) entre sujeito empírico e textual, a qual, ao fim e ao cabo, coloca a questão do “tom”, pode afirmar-se que na prática blogosférica estas divisões algo estanques se estão a esvair. É uma tendência. Por um lado, o narrador confunde-se praticamente com o ‘magno’ personagem que domina as micro-narrativas da blogosfera. Este protagonista relata tudo a partir de um inequívoco e nada ofuscado “Eu”, embora, aqui e ali, figuradamente, possa conceder a voz a outrem, ou contar um micro-enredo a um narratário passageiro. Por outro lado, e de uma maneira paradoxal, o protagonista dominante na blogosfera torna-se geralmente num “Eu” omnisciente que não separa enredo e fábula e que ocupa as mais variadas funções tradicionais (metatexto, emissão, destinatário, fática, etc.).
Um pouco como nos sujeitos textuais da literatura epistolográfica do século XVIII, há nos personagens da blogosfera um certo ‘spleen’ solitário que, no entanto, estabelece amiúde contrastes com uma súbita euforia que é própria de uma simulação de poder (o blogger interioriza a simulação que pressupõe o controlo do dispositivo onde a sua escrita se processa). Esta ingenuidade ‘tech’, muito ligada à omnipresença na rede e no mundo, nada tem a ver o confessionalismo epistolográfico de um Laclos ou de um Richardson. Por outro lado, o confessionalismo que hoje se está a recuperar nos blogues revela ainda a falta de um horizonte de sentido mais geral que o século XVIII levava muito a sério. Estes factos são positivos, creio eu, e estão a dar origem a um “Eu” muito livre, às vezes mesmo sôfrego, desprendido e em permanente procura. É este personagem-narrador-simulador, aparentemente muito próximo da respiração e da pele do sujeito empírico, que hoje imprime um percurso – ou um destino – às micro-narrativas, aos relances do quotidiano, às situações de ‘media res’ e a todo o tipo de quadros ficcionais que são relatados diariamente nos blogues.
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Durante os meses em que desenvolvi o projecto de um blogue em Inglês (o Minion), criei uma rubrica que designei por “The blank blog is staring back at you” e que se iniciava sempre assim: “Bloggers sometimes become characters much like blogging becomes a literary mode”. Nessa rubrica, tentei exemplificar este re-emergir do personagem dotado e enriquecido pelos atributos que acabei de apresentar. Deixo alguns exemplos e, numa segunda vaga, farei o mesmo com alguns blogues portugueses. portugueses:
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Começo por uma história incrível - e ao mesmo tempo mundana - que nos põe a cantar “love is in the air”. O personagem a partir do qual David Adesnik nos expõe o seu enredo sucinto (um “I” que claramente se individualiza no relato) tem como destino o exercício sagaz de uma pequena transgressão (guiar sem carta de condução). No entanto, sem conseguir transgredir, acabará por não atingir o alvo que pretendia. Mais um caso de amor falhado no universo:
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"Last spring, when I was living in Boston, love was in the air. I had a date with a very beautiful young woman in Vermont. But I didn't want to take the bus up to see her. I wanted to drive. However, my driver's license had just expired and I couldn't get a quick renewal, because I no longer lived in DC, where the license was from.Swept away by thoughts of romance, I decided to head over to the local Enterprise Rent-a-Car and hope they wouldn't notice my licensed had expired. But they did. And they explained politely but firmly that renting a car to someone without a valid license is absolutely unacceptable. I knew they were right, so I took the bus. Perhaps that why the girl broke up with me." (29/03/05)
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No Live Surprises You, o protagonista confessional faz eco da dramaturgia que se desenha entre ‘flirt or not to flirt’. Sem qualquer tipo de clímax, o desenlace antecipar-se-á abruptamente ao sentido da própria história: “Will I be able to stop flirting? Heck no!"
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"Secretly, every girl wants to be Cinderella. Every woman wants to be rescued from her circumstances by a wonderful and charming prince who is determined to do anything to get her." (...) "All the good princes are taken or (more often) not interested and all the Cinderellas are too busy chasing to be chased. My suggestion: Secretly like from a distance and flirt little. Flirting only confuses and sends mixed signals. Will I be able to stop flirting? Heck no!" (17/03/05)
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Por fim, nesta sequência do Minion, outra micro-narrativa de teor confessional em que o sujeito empírico e o textual quase se sobrepõem. Trata-se do filho de um camionista que adora o pai. Mas que adora ainda mais os jogos. Qualquer tipo de jogo. A euforia da confissão e da força elocutória:
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"And my father is a truck driver, so I only get to see him like on the weekends and sometimes only every other weekend, but when me and my dad hang out we usually play games. I love games, any games, card games, board games, computer games, or video game, I love them all." (13/03/05)
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Os blogues escritos em Português partilham naturalmente este tipo de narrativa desagregada que se baseia numa espécie de visionarismo instantanista: a situação criada articula-se com um alicerce mínimo onde um personagem age, geralmente tentando atingir uma meta bastante parcelar. Ao contrário do que é próprio da tradição narrativa, na blogosfera, a organização dos micro-relatos não tem como finalidade assegurar a coerência dos eventos que se sucedem no tempo e que atravessam necessárias transformações, desde um estado inicial até a um desfecho. Na blogosfera, os estados confundem-se e a coerência dos eventos resulta, muitas vezes, mais do entreacto paródico que se delineia entre a situação e o percurso dos personagens do que das querelas tradicionais (entre adjuvantes, oponentes, etc.). A própria finalidade da narração na blogosfera também não se resume à tentativa de restaurar um estado inicial que se teria transformado, nem tão-pouco à resolução de um problema, ou de uma oposição gerada inicialmente. O protagonista gera o seu “Eu” e torna-o sobretudo no movente e no móbil (veja-se este segredar tão paródico quanto íntimo, associado a um desejo de partilha e de “ajuda”):
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SOCORRO! SOCORRO! AJUDA!/ Hoje fiz um pic-nic. Vinho de pacote, geleira, frango assado e tortilla, mantas no chão, uma rede atada a duas árvores, cerveja morna, radio-cassete e as músicas da moda, calções, suor no cabelo, moscas, copos de plátisco e uma padilha de ecuatorianos a jogar à bola na azinheira do lado./ O meu domingo metido num taparuere. Alguém reponha o glamour na minha vida!”
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A Adriana Paiva do Periplus paulista é uma exímia narradora do quotidiano urbano. A imagem é sempre parte da equação expressiva da blogger. Neste extracto (a parte narrativa de um post sobre arquitectura efémera e publicitária), volta a sentir-se este quase aconchego entre a enunciação textual e empírica. A euforia imediatista com que o estado de espírito que acompanha a narração se faz notar pouco tem a ver – felizmente – com o que seria a objectividade do relato noutros meios. Um compromissso narrativo interessante:
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De folhetins e enlatados/ Dias atrás, transitando por uma das vias próximas à Avenida Paulista, ao divisar de longe a geringonça (fotos abaixo), cheguei a pensar que se tratasse de resquício de publicidade alusiva à Páscoa. Não. No domingo, percorrendo a Paulista até a altura da Consolação, descobri que o ovo gigante anunciava a estréia, ontem, de novo folhetim global. Sem disposição para assistir um capítulo inteiro de novela que seja, não sabia que a ocupante anterior do horário (novela de inspiração 'new-far-west'?) terminaria por esses dias.”
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Neste post do Vício de Forma, o destino e o personagem confundem-se. A brevíssima paródia ’trágica’ parecia, de facto, estar há muito escrita. É assim que, paulatinamente, um estado inicial quase perfeito (“Estávamos felizes”) dá origem a um súbito e fugaz mal-entendido. O desenlace quase como confissão:
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As onomatopeias estragam as relações/ Trocávamos sms de manhã à noite. A conversa fluía. Estávamos felizes. Até que ela resolveu usar num sms uma onomatopeia, uma que metia uma série de hagás e não era simples de dizer sem uma pessoa sentir que estava a falar para um recém-nascido. Claro que tive de acabar tudo depois.”
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E eis como o Ivan da sua bela Praia nos narra com economia rara uma história de cariz épico e actual. É claro que estes dois atributos não batem certo, ou pelo menos, batem tão certo quanto o desfecho já previsto - desde o incipit - para o relato em questão:
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É extraordinária a atenção que se tem dado à acção judicial de Margarida Rebelo Pinto contra João Pedro George. Ao que parece, há dois indivíduos que conseguiram vender muitos livros graças a uma providência cautelar. E isto é tudo o que há para dizer. Não há, nem nunca houve, nada de propriamente jurídico nisto.”
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Para terminar, mais alguns exemplos – entre uma miríade de possíveis exemplos – que ilustram o novo personagem-narrador-simulador que, muitas vezes, quase se cola à respiração do sujeito empírico:
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Time Capsule plugin/ ACABEI de instalar na barra da direita um novo plugin do Word Press chamado Time Capsule, desenvolvido por Aaron Brazell. É uma forma de ter sempre visíveis os títulos e os links para três posts de há 180 dias atrás…”
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CREDO!: Nestes tempos em que a religião deve servir os nossos propósitos, não haverá uma crença que nos impeça de ir a casamentos e baptizados de outras religiões a meio de Agosto? Quero acreditar.”
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Santos / A primeira sexta-feira de Junho anuncia as noites que aí vêm: bailarico à porta de casa. E os marmelinhos quase de fora foi uma das pérolas que tive de ouvir como som de fundo ao CSI NY.”