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No primeiro dos posts que escrevi sobre o “tom” dos blogues, referi-me à aproximação entre “o que hoje em dia se designa por ”endorsement” publicitário e a clássica pseudonímia “ex eventum” dos velhos textos proféticos”. E concluía: “hoje em dia, há vozes e presenças que se descontextualizaram” e que constituem a “própria pele dos blogues”. Passo a desenvolver e a explicar um pouco melhor a ideia, já que recebi mails que mo solicitaram.
O “endorsement” publicitário consiste no recurso a uma figura pública conhecida que se associa à imagem de um produto. Pretende-se com essa prática majorar e optimizar a marca (a marca é a percepção que o público tem de um produto, de uma organização, de uma pessoa, etc.). Há casos interessantes como o de Fernanda Serrano no BPI, o de Adrien Brody na Ermenegildo Zegna, ou, por exemplo, o de Charlize Theron no famoso “J’adore” da Dior. O “endorsement” é, pois, uma transferência de valor que tem como objectivo avivar uma imagem e adensar uma ilusão.
Já a pseudonímia tipo “vaticinium ex eventum” constituiu uma prática textual muito antiga que atribuía a textos autores muito anteriores à sua enunciação, forjando assim a autoria e atribuindo-lhe uma autoridade e uma legitimação que doutro modo não teriam. Muitos textos proféticos do levante ibérico do século XVI foram atribuídos a Santo Isidoro de Sevilha (por exemplo os da BNP 774), do mesmo modo que os textos de Isaías correspondem a épocas tão diferentes como 740-700 A.C. ou 537-520 a.C., para já não falar, entre outras, da conhecida Profecia de Carlos Magno (reutilizada e forjada durante séculos como a Sibila Tiburtina) que data do século XIV. Este tipo de dissimulação visava igualmente uma transferência de valor e tinha como objectivo específico sedimentar uma vontade e sobretudo consolidar a autenticidade - e a transcendência - de uma ficção.
O que hoje em dia se alterou, no terreno onde os blogues se enunciam, foi a própria ideia de contexto. Aquilo que é o de fora de uma sequência off-line (o de fora de um texto de jornal, de um edifício, de um gesto, ou de um rosto) é, no caso dos blogues, um campo difuso, intermitente e aparentemente ilimitado. Este cibercampo, que é parte da pele dos blogues, veio tornar a significação numa “mise en abîme” que sugere facilmente a ideia de domínio e de óbvia propagação. É por isso que qualquer “blogger” normal releva o “sitemeter” e outros programas de contagem ou ‘lincagem’ (como o "Technorati") para uma transcendência às vezes delirante. A estratégia onanista dos links, a imaginação de partilha de um poder indefinido, assim como a importância da auto-referencialidade inserem-se na silhueta destas tentações.
É por isso que o "blogger" já não precisa do “endorsement” ou do velho “vaticinium ex eventum” para criar a sensação de maior verosimilhança, autoridade, ou refinamento de imagem (veja-se como falhou, há dois anos, a tentativa de imputar um blogue a Anabela Mota Ribeiro, ou de como a pseudonímia na blogosfera se resume quase sempre a um qualquer tipo de medo). Por maior ou menor posicionamento que um blogue tenha, existe sempre uma espécie de simulacro que lhe segreda: “basta-te a simples locução, basta-te o “estares-aí”, basta-te a fantasia do poder e do domínio”, ou seja, bastará tudo aquilo que leva a questionar quem não entende bem o que é a blogosfera: “para que escrevem?, para quê?”. É por isso que, no primeiro post desta série, eu concluía: o “tom” dos blogues é, afinal, um “renovado desígnio apocalíptico, na medida em que traduz a ‘grande visão’ que o blogger tem desta enigmática, ilusória e ilimitada continuidade que é o campo (comunicacional) onde a blogosfera se enuncia”.
O “endorsement” publicitário consiste no recurso a uma figura pública conhecida que se associa à imagem de um produto. Pretende-se com essa prática majorar e optimizar a marca (a marca é a percepção que o público tem de um produto, de uma organização, de uma pessoa, etc.). Há casos interessantes como o de Fernanda Serrano no BPI, o de Adrien Brody na Ermenegildo Zegna, ou, por exemplo, o de Charlize Theron no famoso “J’adore” da Dior. O “endorsement” é, pois, uma transferência de valor que tem como objectivo avivar uma imagem e adensar uma ilusão.
Já a pseudonímia tipo “vaticinium ex eventum” constituiu uma prática textual muito antiga que atribuía a textos autores muito anteriores à sua enunciação, forjando assim a autoria e atribuindo-lhe uma autoridade e uma legitimação que doutro modo não teriam. Muitos textos proféticos do levante ibérico do século XVI foram atribuídos a Santo Isidoro de Sevilha (por exemplo os da BNP 774), do mesmo modo que os textos de Isaías correspondem a épocas tão diferentes como 740-700 A.C. ou 537-520 a.C., para já não falar, entre outras, da conhecida Profecia de Carlos Magno (reutilizada e forjada durante séculos como a Sibila Tiburtina) que data do século XIV. Este tipo de dissimulação visava igualmente uma transferência de valor e tinha como objectivo específico sedimentar uma vontade e sobretudo consolidar a autenticidade - e a transcendência - de uma ficção.
O que hoje em dia se alterou, no terreno onde os blogues se enunciam, foi a própria ideia de contexto. Aquilo que é o de fora de uma sequência off-line (o de fora de um texto de jornal, de um edifício, de um gesto, ou de um rosto) é, no caso dos blogues, um campo difuso, intermitente e aparentemente ilimitado. Este cibercampo, que é parte da pele dos blogues, veio tornar a significação numa “mise en abîme” que sugere facilmente a ideia de domínio e de óbvia propagação. É por isso que qualquer “blogger” normal releva o “sitemeter” e outros programas de contagem ou ‘lincagem’ (como o "Technorati") para uma transcendência às vezes delirante. A estratégia onanista dos links, a imaginação de partilha de um poder indefinido, assim como a importância da auto-referencialidade inserem-se na silhueta destas tentações.
É por isso que o "blogger" já não precisa do “endorsement” ou do velho “vaticinium ex eventum” para criar a sensação de maior verosimilhança, autoridade, ou refinamento de imagem (veja-se como falhou, há dois anos, a tentativa de imputar um blogue a Anabela Mota Ribeiro, ou de como a pseudonímia na blogosfera se resume quase sempre a um qualquer tipo de medo). Por maior ou menor posicionamento que um blogue tenha, existe sempre uma espécie de simulacro que lhe segreda: “basta-te a simples locução, basta-te o “estares-aí”, basta-te a fantasia do poder e do domínio”, ou seja, bastará tudo aquilo que leva a questionar quem não entende bem o que é a blogosfera: “para que escrevem?, para quê?”. É por isso que, no primeiro post desta série, eu concluía: o “tom” dos blogues é, afinal, um “renovado desígnio apocalíptico, na medida em que traduz a ‘grande visão’ que o blogger tem desta enigmática, ilusória e ilimitada continuidade que é o campo (comunicacional) onde a blogosfera se enuncia”.
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P.S.: Caro Paulo Querido: o primeiro post da série ficou a dever-se à leitura de um post no Bloguítica. O modo aparentementre simples (Paulo Gorjão chamou-lhe ontem “semi-desabafo”) como a questão do tom era aí abordada levou-me a interrogar a sua antecâmara. Sem que o esperasse, a verdade é que não tenho parado desde que aí entrei. É essa a razão das aspas: remeter o lexema para o excerto que foi – e é ainda – o ponto de partida para a ‘divagação em curso’.
Reparo que concordamos ambos com um certo regresso (múltiplo) da individuação e com o facto de os blogues constituírem uma espécie de consecução do “pragmatic turn” (verdade/sentido) e também de algumas epistemologias comunicacionais (para tal, podia ter referido outro canadiano mais jovem, o kerckhove, ou o alemão Sloterdijk). Quanto ao papel da instantaneidade (tema que relaciono com o desejo de perfectibilidade em dois livros meus – Anjos e Meteoros e Órbitas da Modernidade), creio que irá transpor cada vez mais a “referenciação” para jogos de linguagem e não tanto para efectivas redes sociais de confiança (a maior parte dos links agenciam linguagem e não a ‘carne’ dos agentes). A instantaneidade é sobretudo geradora de simulações e de prestidigitações e tende por isso a criar cenografias que sempre foram auguradas nas culturas axiais ou escatológicas (a salvação, a perfeição, a metarmofose imediata, a visão). O on-off dos ‘ciberaparelhamentos’ é, hoje em dia, por isso mesmo, a grande catarse das antigas narrativas salvíficas e a sua superação, de algum modo, também. Daí que o reino do presente esteja a reduzir o passado a uma espessa "amnésia colectiva" (Bertolucci) e se tenha, por outro lado, tornado anfitrião de um futuro que, tradicionalmente, sempre foi o local onde se projectavam idealidades de todo o tipo. Um certo niilismo e cautela que reservo face à “utopia” (as aspas remetem para Breton) da sociedade de informação têm aqui a sua fonte. O que não quer dizer que não olhe para este magnífico presente como se fosse uma ponte criativa que une um mundo ‘catalogável’ que já foi e um outro, seguramente tentador, que virá. Continuaremos a dialogar. O tema é muito estimulante (e com o João Nogueira já na embarcação… a coisa promete mesmo). Abraço, L.C.
Reparo que concordamos ambos com um certo regresso (múltiplo) da individuação e com o facto de os blogues constituírem uma espécie de consecução do “pragmatic turn” (verdade/sentido) e também de algumas epistemologias comunicacionais (para tal, podia ter referido outro canadiano mais jovem, o kerckhove, ou o alemão Sloterdijk). Quanto ao papel da instantaneidade (tema que relaciono com o desejo de perfectibilidade em dois livros meus – Anjos e Meteoros e Órbitas da Modernidade), creio que irá transpor cada vez mais a “referenciação” para jogos de linguagem e não tanto para efectivas redes sociais de confiança (a maior parte dos links agenciam linguagem e não a ‘carne’ dos agentes). A instantaneidade é sobretudo geradora de simulações e de prestidigitações e tende por isso a criar cenografias que sempre foram auguradas nas culturas axiais ou escatológicas (a salvação, a perfeição, a metarmofose imediata, a visão). O on-off dos ‘ciberaparelhamentos’ é, hoje em dia, por isso mesmo, a grande catarse das antigas narrativas salvíficas e a sua superação, de algum modo, também. Daí que o reino do presente esteja a reduzir o passado a uma espessa "amnésia colectiva" (Bertolucci) e se tenha, por outro lado, tornado anfitrião de um futuro que, tradicionalmente, sempre foi o local onde se projectavam idealidades de todo o tipo. Um certo niilismo e cautela que reservo face à “utopia” (as aspas remetem para Breton) da sociedade de informação têm aqui a sua fonte. O que não quer dizer que não olhe para este magnífico presente como se fosse uma ponte criativa que une um mundo ‘catalogável’ que já foi e um outro, seguramente tentador, que virá. Continuaremos a dialogar. O tema é muito estimulante (e com o João Nogueira já na embarcação… a coisa promete mesmo). Abraço, L.C.