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quarta-feira, 31 de maio de 2006

O “tom” dos blogues - 21

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A memória começou por ser invisível e mitológica para depois incorporar nessa ficcionalidade acumulada um tom épico e historiográfico. Reinava esta grande crónica do mundo, quando as próteses modernas entraram em acção: de um lado, a ideia científica de história (a partir de meados de setecentos, por exemplo com Vico) e, do outro, os primeiros museus, os arquivos e sobretudo o artefacto fotográfico.
A domesticação do passado, ao sabor de arbitrariedades várias, acabaria por transformar as mais diversas próteses na representação de mundos “objectivos” ao longo de oitocentos e de novecentos. A novidade da rede consiste, hoje em dia, entre muitas outras coisas, na desapropriação dos dados (dos factos passados) e na possibilidade da sua permanente e instantânea actualização (melhor: da sua virtualização).
O que quer dizer que vivemos num mundo bipartido: por um lado, mergulhado numa espécie amnésia colectiva (por via da deificação da actualidade, do agora-aqui e da insaciada devoração do presente em prejuízo dos antigos futuros de ouro); por outro lado, mergulhado num interminável banco de dados susceptível de actualização imediata e simultânea a partir de uma progressiva disseminação dos controlos (uma espécie de simulacro da ubiquidade que foi tão amada na infância do cinema).
Posto este contexto, pergunta-se: qual é o lugar da memória na migração expressiva que os blogues estão hoje a percorrer? Por um lado, a de um instável enquadramento que se agencia, situação a situação, sem grelhas muito bem definidas; por outro lado, a de uma narrativa que vive de uma intensidade diária e que se cruza com um ‘horizonte de interesse’ fulminante e ‘em diagonal’.
Isto significa, por um lado, que a organização cenográfica da memória – que Kant fez corresponder à ideia de “Darstellung” para traduzir o cariz encenado da objectividade” (CFJ,& 59/B255) – se está a transformar numa amálgama de ‘apresentações’ desprovida de qualquer ancoragem. A memória passeia-se, na actualidade blogosférica, entre as metáforas da flutuação, do leme e do catavento. Para além disso, à moda nominalista, a memória esvai-se numa leitura enviesada que apenas faz conjunto a partir da omnipresença de posts discretos, concretos e quase sempre actuais.
Isto significa ainda que a convergência de interesses entre o imediatismo quotidiano dos posts e o seu horizonte instantâneo de leitura é, de algum modo, homológica ao que se passa na nossa mente, pelo menos ao nível do “si-autobiográfico” e da “consciência alargada” (para recorrer a termos caros a Damásio). No fundo, tudo se passa como se a interacção proporcionada pela rede se traduzisse por uma tentativa de aproximação aos nossos próprios esquemas neuronais e fisiológicos. No meu livro Músicas da Consciência (2002), escrito em diálogo com O Sentimento de Si (1999) de A. Damásio (ambos da Europa-América), entre muitos outros aspectos, foram inventariados os dois primeiros níveis da consciência onde as imagens – na sua maioria não actualizáveis pela mente - ainda não coabitam com a memória (o “proto-si”, de um lado, e a “consciência” e o “si” nucleares, do outro). É somente no terceiro nível que as imagens actuais (mas já imagens de imagens, tal como nos pixels) e os complexos bancos de dados da mente acabam por interagir com uma velocidade estonteante: dez mil para um é a escala que se interpõe entre a realidade comunicacional verificada nos circuitos que ligam os neurónios e a realidade da primeira representação correspondente (e que está ininterruptamente, a cada segundo, a emergir através da “consciência nuclear”). O que torna possível este “grande filme do cérebro” - que é a consciência alargada – é a capacidade “de aprender e, consequentemente, de reter miríades de experiências previamente conhecidas através da consciência nuclear” e ainda a capacidade “de reactivar esses registos de tal modo que, enquanto objectos,” acabam por ser compreendidos como algo que pertence a quem os processou.
Nos posts, esta operação de simultânea enunciação, apropriação e montagem (onde interagem o registo ‘sempre actual’ dos posts e o dispositivo casuístico que funciona como enquadramento e memória para a leitura) determina o instantanismo do ‘género’ neófito. Sobrará ainda o arquivo, é verdade: esse destino de viagem exótico, cujo sentido resulta tanto do acaso como do capricho do navegador solitário.
Não se pode, pois, dizer que a memória se tenha exilado da blogosfera. Mas, com toda a certeza que se tornou numa extraordinária personagem mitológica do nosso tempo, cuja presença obedece à metáfora do “incessante estilhaço”. Como é possível pensar que a história da expressão blogosférica (que se está a fazer agora pelos seus próprios passos) não é uma questão proeminente?