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Depois de ter analisado as regras prescritas por Alexandre Soares Silva, passo hoje a analisar as “DEZ LEIS DO ABRUPTO SOBRE OS DEBATES NA BLOGOSFERA (Versão 2.0)”, publicadas a 2 de Março deste ano. As regras enunciadas na blogosfera, ou no limiar da blogosfera – caso das regras sobre o ‘género crónica’ de João P. Coutinho -, são de grande importância para o debate em torno da procura expressiva na blogosfera (ou, por outras palvras, da adequação da linguagem ao novo meio - o chamado “tom”).
Nestas regras o mais interessante é, desde logo, a conjectura. Elas não se apresentam, como “mandamentos” - ou como deduções que teriam sido aferidas de modo lógico -, nem como induções puramente casuísticas. O modo como são apresentadas remete de imediato para o seu cariz flexível (“Como todas as Leis dão origem a Excepções, que são elas próprias outras Leis que regulam as Excepções”) e irónico (elas “só podem ser formuladas de forma irónica, ou seja, absolutamente verdadeira”). Não o tipo de ironia vivamente paródica das regras de Alexandre Soares Silva, mas uma ironia contrastante que distancia a aparente frieza dos termos dos seus vários considerandos, “notas” e explicativos. É como se várias vozes fossem calcorreando a enunciação destas regras, num exercício de conjectura permanente (aquilo a que Peirce designou por abdução, esse “processo de formação de uma hipótese explicativa” que não se limita, nem apenas “a determinar um valor”, caso da indução, nem a “desenvolver as consequências necessárias de uma hipótese pura”, caso da dedução). Estas conjecturas sucessivas que vão explicando e fixando regras correspondem, ao fim e ao cabo, a um desígnio explícito, ou seja: “descrevem o modo como os debates na blogosfera se desenrolam”. Por outras palavras, são regras - ou simples “constatações” - que ilustram o modo como o discurso se dispõe e organiza sempre que o contraditório, a polémica e o debate se manifestam entre blogues. Deixado de lado o aspecto preambular, avancemos agora para o coração das regras (as "Leis”):
“PRIMEIRA LEI DO ABRUPTO: Evitar discutir a Posição, procurar atacar a Contradição.”
Uma das fraquezas destas regras é a total ausência de exemplos. Até porque as regras são sempre modos de significar o que se comunica, através de correlações que associam aquilo que se diz (conteúdos) à expressão utilizada. Seja como for, é evidente que a fulanização militante é (quase sempre) um dado dos debates na blogosfera, acabando por reflectir a emergência da individualização no quadro da arena ‘des-subjectivada’ da rede (ver sobre o assunto, “O ‘tom’ dos blogues – 8”), numa posição cómoda que é de livre interacção e iniciativa, embora sem a contrapartida do escrutínio. A entrada em cena das enunciações mais variadas (a diferença de posicionamento e de reconhecimento públicos não dissuadem e até agravam a questão) é síncrona, simultânea e desenvolve de imediato um simulacro de concorrência sem quaisquer regras. Daí a dificuldade no debate em situar “contradições” próprias e em projectar quase exclusivamente no ‘outro’ o cerne dos paradoxos e das incoerências (entre blogues, o ‘outro’ é um espaço radical e ideal de afectos e por isso circula facilmente entre a grande empatia e os chamados “ódios de estimação”). A conclusão de JPP a este respeito é óbvia: só há comentários em número substancial, quando os posts contêm “ataques”. O que pressupõe uma rígida linearidade no modo como (dominantemente) se comentaria na blogosfera. Creio que, neste particular, por experiência própria, o número de excepções podia ser considerável e não tão extremado. No entanto, a pirataria sempre viveu em nome da sobrevivência e, no caso da blogosfera, dir-se-ia que vive contra a ‘desactualização’: está sempre lá, batendo-se contra a devoração do próprio tempo da rede.
“SEGUNDA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera é um lugar de fronteira, onde impera a "lei da selva" e o darwinismo social, logo a intensidade da zanga e da irritação na blogosfera é muito superior à da atmosfera.”
Nesta regra JPP descreve o modo como o féerico praticante das caixas de comentários (esses “Trolls com nick name”) se adapta ao meio. Ele é quase sempre um “anónimo” que desejaria ser “muito conhecido” e que age sobretudo nos blogues mais visitados. Os que não são considerados como ‘agentes de terror’, os chamados “curiosos-sérios” e “inocentes-úteis”, acabariam, com o tempo, por desaparecer, por criar blogues ou – renovando o caudal da espécie dominante – por aderir ao fluxo do vandalismo. É por isso que JPP afirma que a blogosfera não é um espaço simpático (“aprazível”) para “espíritos amáveis” e cordatos. Quanto ao “lugar de fronteira”, é interessante entender que é justamente a diluição de fronteiras entre limiares (público-privado, auditório-emissores, verdade-sentido, etc.) que melhor caracteriza a rede e que a transforma numa matéria sem ‘exterior’ e quase apenas composta por ‘linhas de fuga’. Por outras palavras: não há porto seguro, nem palácio dentro do amuralhado do castelo que sustenha a permanente e plural contaminação das expressões e poderes em jogo. A “zanga” na relação entre atmosfera e blogosfera, último ponto desta regra, espelha a adopção de regras que não têm em conta a perlocução (o impacto). Na atmosfera, o impacto é sempre escrutinado por mecanismos sociais bastante apertados, o que não acontece na rede e, mais concretamente, no (às vezes) familiar bairro blogosférico. Na blogosfera, a expressão acaba por ter em conta apenas a locução (o próprio acontecimento comunicacional) e a ilocução (o compromisso expressivo criado através da linguagem), mas quase se abstém de relevar a importância da perlocução (é aqui justamente que reluz a presença da “lei da selva”, i.e., na proliferação quase ilimitada, indeterminada e caótica de efeitos).
“TERCEIRA LEI DO ABRUPTO : A esmagadora maioria dos temas, comentários, reacções, alinhamentos, posições é absolutamente previsível.”
Creio que esta regra corresponde a um acomodamento que é comum à atmosfera (a demarcação de campos como uma coisa dada e pouco ou nada sujeita ao dilema, à desestruturação e à dúvida). Contudo, a previsibilidade “absoluta” poderá ser excessiva. É claro que existem isotopias quase compulsivas (sobre o assunto, ver "O 'tom' dos blogues - 14"), mas a procura de sentido individual no novo meio faz com que na blogosfera a expressão se procure a si própria em diversas frentes. Este facto faz do uso da linguagem (não me refiro aos “trolls”, naturalmente) um campo rico e potencial que nem sempre coopera de modo adequado com a febre reactiva do alinhamento. Esta relativa deriva ou desfasamento também faz regra, porventura excepção, mas sempre a considerar.
“QUARTA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera tem horror ao vazio.”
Referi-me a este facto no post anterior, embora na perspectiva de quem encara de fora e com estranheza a blogosfera. O caso aqui expresso é complementar e diz respeito à compulsão, ou à prática de fluxo no seio do mundo dos blogues (ver “O ‘tom’ dos blogues -14”). A provisoriedade e a obsessão, tal como JPP as considera, aliam uma característica da rede (o carácter simultaneamente efémero e perene estilo ‘pixel’) à euforia compulsiva da expressão onde confluem subitamente edição, autor, enunciação, crítica e toda a navegação sem géneros nem limites à vista. Há neste imenso e abrupto ‘abismo’ um fascínio pelo meio que se confunde com a adulação à linguagem própria do ‘blogger’. O resto são espectros e visões fantasmáticas do próprio agenciamento blogosférico: “egos”, “ids” e outro material desenterrado da potencialidade (quando o que era trazido à realidade decorria de uma actualização pontual e regrada) para a virtualidade (onde tudo parece estar subitamente à mostra e ao mesmo tempo). A “implosão” e o “cansaço” (associados ao ‘abre e fecha’ de blogues) acabam por constituir-se como simples cenografias de passagem no crescimento selvagem, desalinhado e inorgânico do novo meio. Num tempo em que a razão das vanguardas desapareceu (antecipar um futuro desalojando um presente), reaparece a aventura fáustica que faz da morte e da vida um vaivém intermitente, ou uma coabitação sem problemas (a “necrologia” do blogue enterrado e a fúria instantanista do novo blogue renascido). É a consecução de um velho sonho romântico que via no simular de uma infinita possibilidade de expressões uma vitória imensa do homem. Tal como Unamuno referiu, a “perda de fé na imortalidade da alma e na finalidade do universo” teve como símbolo maior o Doutor Fausto. Ei-lo de regresso, embora sem espessura literária, sem móbil e sem rosto. Apenas como mosto de uma poção mágica de que tudo e todos se parecem ter inabilmente apropriado. Trata-se, porventura, do novo-riquismo expressivo da blogosfera.
“QUINTA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera é a Aldeia dentro da Aldeia Global, todos são vizinhos, todos sabem tudo de todos, todos zelam activamente o cumprimento da regra principal da Aldeia: o igualitarismo tem que ser absoluto.”
Esta é das regras mais interessantes, já que constata a existência de uma ideia de “igualitarismo”, embora sem aura nem horizonte hipercodificado. Aqui já não há a voragem dos Fraticelli, do Pseudo-livro de Fiore, do Apocalipse taborita, dos textos de Ubertino de Casale e de Guilloche de Bordéus, dos milenarismos alemães do século XV, do movimento Hussita, de More, dos revolucionários Croquants e do Périgord, dos sans-coulotes e de todos os ideológos de oitocentos. Aqui a ausência de códigos fixos e centrados está na razão directa da simulação de um novo cristianismo original e próprio da instantaneidade tecnológica. Como se da fé fáustica renascida do novo ‘hic et nunc’ ressurgisse um ‘homem novo’ que imporia aos blogues mais singularizantes uma espécie de desapropriação dos meios de produção imaginativos e e, aqui e ali, expressivos. Daí a violência (é por isso que JPP se refere à parábola da “luta de classes”); e daí também o estilo vagamente expressionista - que recorre ao contraste entre a sombra e a luz - para traduzir a ideia de uma empatia intolerante porque obrigatória.
“SEXTA LEI DO ABRUPTO : Na blogosfera o lixo atrai o lixo.”
Mais uma vez, penso que não há exclusividade blogosférica nesta constatação. A genuinidade da atracção dos lixos consiste no princípio permanente e generalizado da reciclagem, descrito na “Quarta Lei”, do mesmo modo que a sobrevivência bacterial dos “Trolls” dita a concentração activa dos “lixos”, já também descrita na “Segunda Lei”. Passe a repetição que é própria na remissão intra-leis, é igualmente verdade que a falta de qualidade possa imputar-se à metáfora do “lixo”: há qualidade quando se coliga referência com audiência (ver “O ‘tom’ dos blogues – 12”). Se num blogue não se vislumbra nem audiência nem referência, então também não se verifica qualquer acumulação de lixo, mas tão-só desperdício.
“SÉTIMA LEI DO ABRUPTO : O tribalismo é a doença infantil da blogosfera.”
O subtexto desta regra remete para os extremismos e visa um tema muito interessante da procura expressiva (do“tom”) dos blogues: o seu espírito gregário e cooperativo. O sentido pode ser determinado pelo simples uso da linguagem, mas pode também inscrever-se no espírito de campanha. Um blogue é “um mundo inteiro a sós”, um fechamento-aberto enclausurado num silêncio glacial, embora com a consciência de que existe uma contiguidade (de vozes) quase sem fim à sua volta. Esta ‘cibercarne’ é o código náutico que garante ao novo guardador do leme, o blogger, a sua segurança mínima. Contudo, o método de conjectura (a abdução) parece-me aqui insuficiente para determinar a evolução na blogosfera, tal como JPP a descreve: do “amiguismo” para o “grupismo” e deste para o “tribalismo”. Sei que a trama é necessariamente figurada e que o “ataque em grupo” é a descrição alegórica da ‘teoria das cabalas’ (e das embuscadas) aplicada ao bairrismo da “Quinta Lei” (o ‘mise en abîme’ da “aldeia” da “aldeia” da “aldeia global”). Só que os ingredientes localistas (e linguístas) da blogosfera, apesar das suas “afinidades frágeis”, respiram e vivem num éter bem mais geral. A rede é a casa da blogosfera e, se a individualidade de um blogue está sujeita ao ‘abre e fecha’ da “Quarta Lei”, então os grupos e as tribos muito mais o estarão. Parece-me que a diluição dos perímetros é uma norma da rede bem mais vincada do que os laços cooperativos entre os nexos flutuantes da blogosfera.
“OITAVA LEI DO ABRUPTO : O que vale na blogosfera tem que valer na atmosfera.”
Esta regra é o tema de “O ‘tom’ dos blogues – 15” e diz respeito à assimetria de olhares que atravessa a comunicabilidade contemporânea, sobretudo os meios clássicos e os novos meios da rede, entre eles a blogosfera. Há casos de recusa ostensiva, de partilha, de incompreensão e de remissão instrumental. O jogo é aqui um jogo de poder, mas é também um jogo acerca da função das mediações no mundo actual. A mediação uniu tradicionalmente no espaço público os seus objectos à oposição tímica (thimos: sopro vital) que se gera entre euforia e disforia. Ao contrário dos média tradicionais (e da antiga tragédia grega), o texto publicitário e o discurso político do poder preferem a primeira opção, enquanto aqueles - e outras micro-narrativas do quotidiano - encarnam a tradição da expiação disfórica. Este alinhamento é menos esquemático na blogosfera, já que uma coisa é o universo por que o ’blogger’ opta (o mundo e a perspectiva a que se refere) e outra coisa é a conformidade da sua linguagem ao novo meio (na horizontalidade de excertos e fragmentos de fontes de fontes que pesquisa, i.e., que abundantemente “googla”). As duas coisas são autónomas e acabam por criar tensões que são totalmente alheias ao estilo, ao método e às regras dos média tradicionais. Daí que a paródia (a mobilização de dados de dados que se perdem no agenciamento de dados) conceda à blogosfera um “tom” que não é próprio da restante comunicabilidade clássica. Na blogosfera, nem sempre a euforia é positiva e nem sempre a disforia é negativa: o que as religará é essenciamente o paródico, muitas vezes um paródico vazio e quase sem objecto.
“NONA LEI DO ABRUPTO : O carácter lúdico dos blogues diminui à medida que a importância da blogosfera aumenta na atmosfera.”
É, curiosamente, a constatação mais sentida e pressentida por Paulo Gorjão. À medida que um blogue se torna referenciado (a origem dos olhares atravessa os meios clássicos e os meios da rede), a audiência pode aumentar e esse facto individualiza e esquematiza inevitavelmente a expressão e a temática na blogosfera. Esta subordinação ao olhar, ou esta fuga para a frente face a um certo pudor da palavra (que creio ter ainda muitas reminiscências ‘atmosféricas’), tem influência decisiva na articulação entre o lúdico e a especialização mais fria e/ou baseada em rubricas fixas. Há um arco de expectativas que envolve estes factos e que defrauda, em primeiro lugar, o enunciador que gostaria de ter partilhado ‘a tempo’ as várias potencialidades do projecto que (deliberadamente) ficaram pelo caminho. Mas o próprio conceito de ‘a tempo’ na instantaneidade blogosférica não se compadece com a perfectibilidade, tal como acontece noutro tipo de produção de simulacros. Daí a quase escravidão nietzchiana, ou “a sublime ilusão de ter a fraqueza por liberdade, a necessidade por mérito”. E daí o facto de a escolha ter que se adaptar, na maioria dos casos, à oscilação da construção de agendas e à proliferação cíclica de meta-ocorrências que cruzam - estou de acordo - todo o espaço (público e privado, atmosférico e blogosférico). Mas existem, apesar de tudo, blogues de referência que são blogues lúdicos. Voltarei ao tema, na medida em que o lúdico se transformou, nas últimas décadas, numa parte importante do ‘novo edifício’ que veio suprir a falência das velhas éticas axiais (teo-semióticas ou modernas).
“DÉCIMA LEI DO ABRUPTO SOBRE OS DEBATES NA BLOGOSFERA: A blogosfera não se consegue ver ao espelho.”
A cegueira: uma última regra, porventura menos substancial, mas mais conclusiva. É sobretudo uma metáfora que se subsume ao conteúdos das anteriores regras e que lhes acrescenta um dado curioso e talvez imprevisto: a pouca plasticidade do meio. Ao contrário das obras que vivem de contextos tangíveis e delimitados (esculturas, livros, jornais, objectos, arquitecturas, paisagens), o texto blogosférico auto-inscreve-se e revê-se sempre - pleonasticamente - de modo reflexivo. Ele é praticamente o seu contexto e por isso reinventa-se como um homem entre espelhos paralelos, mas não como um homem diante de um único espelho. As visões celestiais dos velhos textos apocalípticos descem assim à terra e encarnam nas mil miragens que se perdem à superfície dos espelhos. Cada blogue é, ao fim e ao cabo, um fragmento solto e invisível feito de muitas "Alices". Mas cego, ou seja, sem a plasticidade que troca a imagem ao espelho pela deslumbrada figura do ‘blogger’.
Nestas regras o mais interessante é, desde logo, a conjectura. Elas não se apresentam, como “mandamentos” - ou como deduções que teriam sido aferidas de modo lógico -, nem como induções puramente casuísticas. O modo como são apresentadas remete de imediato para o seu cariz flexível (“Como todas as Leis dão origem a Excepções, que são elas próprias outras Leis que regulam as Excepções”) e irónico (elas “só podem ser formuladas de forma irónica, ou seja, absolutamente verdadeira”). Não o tipo de ironia vivamente paródica das regras de Alexandre Soares Silva, mas uma ironia contrastante que distancia a aparente frieza dos termos dos seus vários considerandos, “notas” e explicativos. É como se várias vozes fossem calcorreando a enunciação destas regras, num exercício de conjectura permanente (aquilo a que Peirce designou por abdução, esse “processo de formação de uma hipótese explicativa” que não se limita, nem apenas “a determinar um valor”, caso da indução, nem a “desenvolver as consequências necessárias de uma hipótese pura”, caso da dedução). Estas conjecturas sucessivas que vão explicando e fixando regras correspondem, ao fim e ao cabo, a um desígnio explícito, ou seja: “descrevem o modo como os debates na blogosfera se desenrolam”. Por outras palavras, são regras - ou simples “constatações” - que ilustram o modo como o discurso se dispõe e organiza sempre que o contraditório, a polémica e o debate se manifestam entre blogues. Deixado de lado o aspecto preambular, avancemos agora para o coração das regras (as "Leis”):
“PRIMEIRA LEI DO ABRUPTO: Evitar discutir a Posição, procurar atacar a Contradição.”
Uma das fraquezas destas regras é a total ausência de exemplos. Até porque as regras são sempre modos de significar o que se comunica, através de correlações que associam aquilo que se diz (conteúdos) à expressão utilizada. Seja como for, é evidente que a fulanização militante é (quase sempre) um dado dos debates na blogosfera, acabando por reflectir a emergência da individualização no quadro da arena ‘des-subjectivada’ da rede (ver sobre o assunto, “O ‘tom’ dos blogues – 8”), numa posição cómoda que é de livre interacção e iniciativa, embora sem a contrapartida do escrutínio. A entrada em cena das enunciações mais variadas (a diferença de posicionamento e de reconhecimento públicos não dissuadem e até agravam a questão) é síncrona, simultânea e desenvolve de imediato um simulacro de concorrência sem quaisquer regras. Daí a dificuldade no debate em situar “contradições” próprias e em projectar quase exclusivamente no ‘outro’ o cerne dos paradoxos e das incoerências (entre blogues, o ‘outro’ é um espaço radical e ideal de afectos e por isso circula facilmente entre a grande empatia e os chamados “ódios de estimação”). A conclusão de JPP a este respeito é óbvia: só há comentários em número substancial, quando os posts contêm “ataques”. O que pressupõe uma rígida linearidade no modo como (dominantemente) se comentaria na blogosfera. Creio que, neste particular, por experiência própria, o número de excepções podia ser considerável e não tão extremado. No entanto, a pirataria sempre viveu em nome da sobrevivência e, no caso da blogosfera, dir-se-ia que vive contra a ‘desactualização’: está sempre lá, batendo-se contra a devoração do próprio tempo da rede.
“SEGUNDA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera é um lugar de fronteira, onde impera a "lei da selva" e o darwinismo social, logo a intensidade da zanga e da irritação na blogosfera é muito superior à da atmosfera.”
Nesta regra JPP descreve o modo como o féerico praticante das caixas de comentários (esses “Trolls com nick name”) se adapta ao meio. Ele é quase sempre um “anónimo” que desejaria ser “muito conhecido” e que age sobretudo nos blogues mais visitados. Os que não são considerados como ‘agentes de terror’, os chamados “curiosos-sérios” e “inocentes-úteis”, acabariam, com o tempo, por desaparecer, por criar blogues ou – renovando o caudal da espécie dominante – por aderir ao fluxo do vandalismo. É por isso que JPP afirma que a blogosfera não é um espaço simpático (“aprazível”) para “espíritos amáveis” e cordatos. Quanto ao “lugar de fronteira”, é interessante entender que é justamente a diluição de fronteiras entre limiares (público-privado, auditório-emissores, verdade-sentido, etc.) que melhor caracteriza a rede e que a transforma numa matéria sem ‘exterior’ e quase apenas composta por ‘linhas de fuga’. Por outras palavras: não há porto seguro, nem palácio dentro do amuralhado do castelo que sustenha a permanente e plural contaminação das expressões e poderes em jogo. A “zanga” na relação entre atmosfera e blogosfera, último ponto desta regra, espelha a adopção de regras que não têm em conta a perlocução (o impacto). Na atmosfera, o impacto é sempre escrutinado por mecanismos sociais bastante apertados, o que não acontece na rede e, mais concretamente, no (às vezes) familiar bairro blogosférico. Na blogosfera, a expressão acaba por ter em conta apenas a locução (o próprio acontecimento comunicacional) e a ilocução (o compromisso expressivo criado através da linguagem), mas quase se abstém de relevar a importância da perlocução (é aqui justamente que reluz a presença da “lei da selva”, i.e., na proliferação quase ilimitada, indeterminada e caótica de efeitos).
“TERCEIRA LEI DO ABRUPTO : A esmagadora maioria dos temas, comentários, reacções, alinhamentos, posições é absolutamente previsível.”
Creio que esta regra corresponde a um acomodamento que é comum à atmosfera (a demarcação de campos como uma coisa dada e pouco ou nada sujeita ao dilema, à desestruturação e à dúvida). Contudo, a previsibilidade “absoluta” poderá ser excessiva. É claro que existem isotopias quase compulsivas (sobre o assunto, ver "O 'tom' dos blogues - 14"), mas a procura de sentido individual no novo meio faz com que na blogosfera a expressão se procure a si própria em diversas frentes. Este facto faz do uso da linguagem (não me refiro aos “trolls”, naturalmente) um campo rico e potencial que nem sempre coopera de modo adequado com a febre reactiva do alinhamento. Esta relativa deriva ou desfasamento também faz regra, porventura excepção, mas sempre a considerar.
“QUARTA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera tem horror ao vazio.”
Referi-me a este facto no post anterior, embora na perspectiva de quem encara de fora e com estranheza a blogosfera. O caso aqui expresso é complementar e diz respeito à compulsão, ou à prática de fluxo no seio do mundo dos blogues (ver “O ‘tom’ dos blogues -14”). A provisoriedade e a obsessão, tal como JPP as considera, aliam uma característica da rede (o carácter simultaneamente efémero e perene estilo ‘pixel’) à euforia compulsiva da expressão onde confluem subitamente edição, autor, enunciação, crítica e toda a navegação sem géneros nem limites à vista. Há neste imenso e abrupto ‘abismo’ um fascínio pelo meio que se confunde com a adulação à linguagem própria do ‘blogger’. O resto são espectros e visões fantasmáticas do próprio agenciamento blogosférico: “egos”, “ids” e outro material desenterrado da potencialidade (quando o que era trazido à realidade decorria de uma actualização pontual e regrada) para a virtualidade (onde tudo parece estar subitamente à mostra e ao mesmo tempo). A “implosão” e o “cansaço” (associados ao ‘abre e fecha’ de blogues) acabam por constituir-se como simples cenografias de passagem no crescimento selvagem, desalinhado e inorgânico do novo meio. Num tempo em que a razão das vanguardas desapareceu (antecipar um futuro desalojando um presente), reaparece a aventura fáustica que faz da morte e da vida um vaivém intermitente, ou uma coabitação sem problemas (a “necrologia” do blogue enterrado e a fúria instantanista do novo blogue renascido). É a consecução de um velho sonho romântico que via no simular de uma infinita possibilidade de expressões uma vitória imensa do homem. Tal como Unamuno referiu, a “perda de fé na imortalidade da alma e na finalidade do universo” teve como símbolo maior o Doutor Fausto. Ei-lo de regresso, embora sem espessura literária, sem móbil e sem rosto. Apenas como mosto de uma poção mágica de que tudo e todos se parecem ter inabilmente apropriado. Trata-se, porventura, do novo-riquismo expressivo da blogosfera.
“QUINTA LEI DO ABRUPTO : A blogosfera é a Aldeia dentro da Aldeia Global, todos são vizinhos, todos sabem tudo de todos, todos zelam activamente o cumprimento da regra principal da Aldeia: o igualitarismo tem que ser absoluto.”
Esta é das regras mais interessantes, já que constata a existência de uma ideia de “igualitarismo”, embora sem aura nem horizonte hipercodificado. Aqui já não há a voragem dos Fraticelli, do Pseudo-livro de Fiore, do Apocalipse taborita, dos textos de Ubertino de Casale e de Guilloche de Bordéus, dos milenarismos alemães do século XV, do movimento Hussita, de More, dos revolucionários Croquants e do Périgord, dos sans-coulotes e de todos os ideológos de oitocentos. Aqui a ausência de códigos fixos e centrados está na razão directa da simulação de um novo cristianismo original e próprio da instantaneidade tecnológica. Como se da fé fáustica renascida do novo ‘hic et nunc’ ressurgisse um ‘homem novo’ que imporia aos blogues mais singularizantes uma espécie de desapropriação dos meios de produção imaginativos e e, aqui e ali, expressivos. Daí a violência (é por isso que JPP se refere à parábola da “luta de classes”); e daí também o estilo vagamente expressionista - que recorre ao contraste entre a sombra e a luz - para traduzir a ideia de uma empatia intolerante porque obrigatória.
“SEXTA LEI DO ABRUPTO : Na blogosfera o lixo atrai o lixo.”
Mais uma vez, penso que não há exclusividade blogosférica nesta constatação. A genuinidade da atracção dos lixos consiste no princípio permanente e generalizado da reciclagem, descrito na “Quarta Lei”, do mesmo modo que a sobrevivência bacterial dos “Trolls” dita a concentração activa dos “lixos”, já também descrita na “Segunda Lei”. Passe a repetição que é própria na remissão intra-leis, é igualmente verdade que a falta de qualidade possa imputar-se à metáfora do “lixo”: há qualidade quando se coliga referência com audiência (ver “O ‘tom’ dos blogues – 12”). Se num blogue não se vislumbra nem audiência nem referência, então também não se verifica qualquer acumulação de lixo, mas tão-só desperdício.
“SÉTIMA LEI DO ABRUPTO : O tribalismo é a doença infantil da blogosfera.”
O subtexto desta regra remete para os extremismos e visa um tema muito interessante da procura expressiva (do“tom”) dos blogues: o seu espírito gregário e cooperativo. O sentido pode ser determinado pelo simples uso da linguagem, mas pode também inscrever-se no espírito de campanha. Um blogue é “um mundo inteiro a sós”, um fechamento-aberto enclausurado num silêncio glacial, embora com a consciência de que existe uma contiguidade (de vozes) quase sem fim à sua volta. Esta ‘cibercarne’ é o código náutico que garante ao novo guardador do leme, o blogger, a sua segurança mínima. Contudo, o método de conjectura (a abdução) parece-me aqui insuficiente para determinar a evolução na blogosfera, tal como JPP a descreve: do “amiguismo” para o “grupismo” e deste para o “tribalismo”. Sei que a trama é necessariamente figurada e que o “ataque em grupo” é a descrição alegórica da ‘teoria das cabalas’ (e das embuscadas) aplicada ao bairrismo da “Quinta Lei” (o ‘mise en abîme’ da “aldeia” da “aldeia” da “aldeia global”). Só que os ingredientes localistas (e linguístas) da blogosfera, apesar das suas “afinidades frágeis”, respiram e vivem num éter bem mais geral. A rede é a casa da blogosfera e, se a individualidade de um blogue está sujeita ao ‘abre e fecha’ da “Quarta Lei”, então os grupos e as tribos muito mais o estarão. Parece-me que a diluição dos perímetros é uma norma da rede bem mais vincada do que os laços cooperativos entre os nexos flutuantes da blogosfera.
“OITAVA LEI DO ABRUPTO : O que vale na blogosfera tem que valer na atmosfera.”
Esta regra é o tema de “O ‘tom’ dos blogues – 15” e diz respeito à assimetria de olhares que atravessa a comunicabilidade contemporânea, sobretudo os meios clássicos e os novos meios da rede, entre eles a blogosfera. Há casos de recusa ostensiva, de partilha, de incompreensão e de remissão instrumental. O jogo é aqui um jogo de poder, mas é também um jogo acerca da função das mediações no mundo actual. A mediação uniu tradicionalmente no espaço público os seus objectos à oposição tímica (thimos: sopro vital) que se gera entre euforia e disforia. Ao contrário dos média tradicionais (e da antiga tragédia grega), o texto publicitário e o discurso político do poder preferem a primeira opção, enquanto aqueles - e outras micro-narrativas do quotidiano - encarnam a tradição da expiação disfórica. Este alinhamento é menos esquemático na blogosfera, já que uma coisa é o universo por que o ’blogger’ opta (o mundo e a perspectiva a que se refere) e outra coisa é a conformidade da sua linguagem ao novo meio (na horizontalidade de excertos e fragmentos de fontes de fontes que pesquisa, i.e., que abundantemente “googla”). As duas coisas são autónomas e acabam por criar tensões que são totalmente alheias ao estilo, ao método e às regras dos média tradicionais. Daí que a paródia (a mobilização de dados de dados que se perdem no agenciamento de dados) conceda à blogosfera um “tom” que não é próprio da restante comunicabilidade clássica. Na blogosfera, nem sempre a euforia é positiva e nem sempre a disforia é negativa: o que as religará é essenciamente o paródico, muitas vezes um paródico vazio e quase sem objecto.
“NONA LEI DO ABRUPTO : O carácter lúdico dos blogues diminui à medida que a importância da blogosfera aumenta na atmosfera.”
É, curiosamente, a constatação mais sentida e pressentida por Paulo Gorjão. À medida que um blogue se torna referenciado (a origem dos olhares atravessa os meios clássicos e os meios da rede), a audiência pode aumentar e esse facto individualiza e esquematiza inevitavelmente a expressão e a temática na blogosfera. Esta subordinação ao olhar, ou esta fuga para a frente face a um certo pudor da palavra (que creio ter ainda muitas reminiscências ‘atmosféricas’), tem influência decisiva na articulação entre o lúdico e a especialização mais fria e/ou baseada em rubricas fixas. Há um arco de expectativas que envolve estes factos e que defrauda, em primeiro lugar, o enunciador que gostaria de ter partilhado ‘a tempo’ as várias potencialidades do projecto que (deliberadamente) ficaram pelo caminho. Mas o próprio conceito de ‘a tempo’ na instantaneidade blogosférica não se compadece com a perfectibilidade, tal como acontece noutro tipo de produção de simulacros. Daí a quase escravidão nietzchiana, ou “a sublime ilusão de ter a fraqueza por liberdade, a necessidade por mérito”. E daí o facto de a escolha ter que se adaptar, na maioria dos casos, à oscilação da construção de agendas e à proliferação cíclica de meta-ocorrências que cruzam - estou de acordo - todo o espaço (público e privado, atmosférico e blogosférico). Mas existem, apesar de tudo, blogues de referência que são blogues lúdicos. Voltarei ao tema, na medida em que o lúdico se transformou, nas últimas décadas, numa parte importante do ‘novo edifício’ que veio suprir a falência das velhas éticas axiais (teo-semióticas ou modernas).
“DÉCIMA LEI DO ABRUPTO SOBRE OS DEBATES NA BLOGOSFERA: A blogosfera não se consegue ver ao espelho.”
A cegueira: uma última regra, porventura menos substancial, mas mais conclusiva. É sobretudo uma metáfora que se subsume ao conteúdos das anteriores regras e que lhes acrescenta um dado curioso e talvez imprevisto: a pouca plasticidade do meio. Ao contrário das obras que vivem de contextos tangíveis e delimitados (esculturas, livros, jornais, objectos, arquitecturas, paisagens), o texto blogosférico auto-inscreve-se e revê-se sempre - pleonasticamente - de modo reflexivo. Ele é praticamente o seu contexto e por isso reinventa-se como um homem entre espelhos paralelos, mas não como um homem diante de um único espelho. As visões celestiais dos velhos textos apocalípticos descem assim à terra e encarnam nas mil miragens que se perdem à superfície dos espelhos. Cada blogue é, ao fim e ao cabo, um fragmento solto e invisível feito de muitas "Alices". Mas cego, ou seja, sem a plasticidade que troca a imagem ao espelho pela deslumbrada figura do ‘blogger’.