Páginas

quinta-feira, 23 de março de 2006

Três reflexões sobre design

e
Confesso que foi a primeira vez que escrevi sobre design. É um texto já com destino marcado e, apesar de não ser adequado à blogosfera, publico-o aqui (trata-se de um conceito: o 'design do design').
Vantagem fantástica da blogosfera: cada um publica o que quer e adequa num ápice o que normalmente seria inadequado. Moral da história: sobre este, outros posts hão-de vir. Perdoe-se-me a dimensão. Mas apetece-me publicá-lo. É tudo:
e
e
e
1 - Diferente do diferente, monadologia do quotidiano, atomização.
e
A contemporaneidade cumpriu a antiga profecia de G. Deleuze (já quase com quatro décadas[1]) segundo a qual os simulacros seriam “sistemas em que o diferente se refere ao diferente pela própria diferença”. Nestes sistemas não há fundamento, nem identidade prévia nem semelhança interior. Estaríamos num mundo composto por uma espécie de monadologia leibniziana, mas desprovido de um Deus que nos enunciasse o “melhor dos mundos”. Na nova teodiceia indiferente e laica, a matéria e a “notícias” (as meta-ocorrências) aparecem no mesmo plano e na mesma omniurbe global, sem que nos apercebamos tendencialmente das oscilações de valor. A gripe das aves, a guerra entre significados de imagens, uma famosa OPA ou um anúncio de Maradona aparecem nos ecrãs como peças individualizadas que criam sentido por si sós, sem contextos precisos e projectando no que resta da relação clássica emissor-auditórios “linhas de fuga” demasiado abertas.
Existe uma dimensão plástica curiosa nessa “banalidade” virtualizante, ou melhor, uma espécie de minimalismo “clean” que reflecte o estado activo de media res em que vivemos. Tudo está em curso em jeito de fluxo num grande espectáculo hiper-real (onde, por natureza, a antinomia real-ficcional perde sentido dia a dia). O registo baudrillardiano da América, que já havia remetido para uma tal “repetição sem sentido”, condiz com o novo parapeito metafórico (o oposto ao acontecimento irrepetível, próprio do rito religioso ou da ‘ir-reproductibilidade’). Tal como a notícia, o design dispõe-se neste estado estésico avassalador através da simplificação e do recurso a uma racionalidade comunicativa essencialista. Por essa via, a moldagem da matéria convoca o simulacro e sobrepõe, sempre que possível, a singularidade da “pureza emocional” a contextos particulares.
e
e
Estes factos também se estão a processar no mundo das redes (a “segunda natureza”, segundo Roy Ascott) onde sistemas complexos como a prototipagem rápida (RP) ou a litografia estereo tridimensional têm originado o fabrico de séries de produtos adaptados a necessidades individuais. Esta personificação em massa aliada à miniaturização determina que as novas tecnologias, mais do que desígnios instrumentais, tenderão a ser incluídas e entendidas no campo do design como qualquer outro material indiferenciado (o diferente do diferente). Será a consecução de uma utopia comunicacional clássica (de Marshall McLuhan). E será ainda a maior vitória da atomização e da teoria dos simulacros, se não for mesmo a antevisão de uma futura ciberantropologia.
e

re
2 - Indiferença dos planos nos fluxos, coordenação, tudo ao mesmo nível. e e
Os fluxos são preenchimentos, mais automatizados do que autonomizados, no seio dos quais a liberdade é quase anulada por uma vontade prévia que é objectivada pelo instantanismo[2]. Há fluxo quando se consome, há fluxo quando se viaja, há fluxo quando se fala (é por isso que a subordinação está a desaparecer dos discursos), há fluxo quando se lê o mundo nos média e na rede, e há ainda fluxo nas imagens que percorrem o mundo. O domínio omnipresente dos fluxos traduz o termo de uma época em que a autenticidade era ainda uma medida central e referencial (W. Benjamin bem dizia que, pelo facto de a reproductibilidade não ser reprodutível, o “desenvolvimento intensivo de determinados processos de reprodução” tinha fornecido o meio para a “diferenciação e graduação da autenticidade”).
Se o fluxo se tornou na própria reprodução da reprodução, logo a matriz clássica da autenticidade se transpôs para o campo da diferenciação, para o plural e acentrado, dissolvendo-se horizontalmente no que antes foi a ordem vertical do mundo. Um mundo de fluxos é pois um mundo de excesso e de comunicação pela comunicação onde as peças da cultura material estão em trânsito como diferentes e, portanto, sem o requisito clássico da matriz. Ou seja, a matriz é concebida para que a peça entre no trânsito global e a remova (como acontece naqueles códigos genéticos em que os progenitores se suicidam para gerar).
e
e
Não é por acaso que está hoje em voga um hibridismo que integra, embora sem uma ordem central e referencial dada, o que antes eram identidades fixas agregadas. Ao holismo estático da representação, a actual circulação de individualidades discretas impõe o seu novo reino. No design, esse movimento também está em curso através da emergência dos novos materiais que se estão a apresentar à funcionalidade e emoção globais como as novas próteses da nossa cultura material. São simulacros tácteis que podemos fruir com o corpo e com a percepção (cerâmicas flexíveis, espumas metálicas, plásticos condutores, emissores de luz capazes de memorizar as formas, fibras de carbono, etc.). O caso dos polímetros sintéticos é interessante, já que remete directamente para a mimese das propriedades naturais, preservando os atributos tácteis e alterando se necessário “o potencial formal dos produtos”.
É deste modo que os produtos se encaram como esteios que estão para além da forma e função para que foram desenhados. O desenho da matéria satisfaz assim o fluxo dos fluxos - o desejo instantanista -, liofilizando-o e contribuindo decisivamente para a generalizada esteticização do mundo (ou não há hoje um inesperado museu de arte contemporânea a crescer em todo o espaço à nossa volta, para fora do ‘sagrado’ que se institucionalizou após as várias mortes de Deus?)
Esta última ‘aparição’ conduz-nos à mitologia contemporânea da “marca”, definida por Al Ries e Laura Ries[3] – e por outros gurus da epistemologia publicitária – como a “percepção que o público tem de um serviço, produto, pessoa, etc.”. Nada nem ninguém controlará a marca – a percepção geral é um “universal” actuante – e, portanto, ela vive da transcendência que é diariamente reposta por imagens difusas e “lateralizadas” (E. de Bono). Mas a marca acaba sempre por deslizar para além dos sentidos que a condicionam e fá-lo como se fosse a nova “Ideia” platónica, composta por “património”, o que é tangível, e pelo essencial “core”, o que o não é. O planeta está assim hipnoticamente preso em torno desta operação de codificação/ descodificação do “core”. A conotação é filha do design, mas a conotação da conotação conduz à marca como tão bem defendeu o semiótico U. Volli[4]. É o design do design, mas neste caso ideal e não material.
e
e
3 – O design do design material.
e
Quando se entra num hipermercado ou no site da “Amazon.com”, verifica-se que o espaço é composto pelo fluxo das formas. O design vive em fluxo, auto-reproduzindo-se, esgotando a capacidade de uma individualização que se adequasse a uma solução geral e universal. Está lá tudo (um "dasein" que agencia todos os agenciamentos que estão em curso). A inscrição de qualquer forma na forma desses espaços (hipermercados e sites muito visitados) é sempre um acto de passagem ou uma notação do diferente no diferente. As matrizes iniciais, ao modo dos “pixels”, parecem dissolver-se e ao mesmo tempo corporizar-se nesta nova concepção que pode ser baptizada como ‘design do design’.
Caracterizá-la-íamos como a moldagem do moldado onde cada inscrição, tal como no hipertexto[5], se submete à provisoriedade (as formas estão em estado de permanente subtracção e adição), à des-subjectividade (enunciação síncrona e plural), à estesia (simultaneidade entre a sinalização e a poiesis), à meta-contextualidade (as formas criam o seu próprio contexto, deixando de haver um “de fora” e “um de dentro” evidentes), à reversibilidade (multimodalidade e coexistência de registos) e ao incorpóreo (no sentido de um agregado inorgânico e descentrado).
Não existindo, felizmente, teorias filosófica ou semióticas unificadas do design, parece-nos que esta caracterização do ‘design do design’ poderá pelo menos complementar a noção de C. e P. Fiell, avançada no recente Designing The 21st Century[6], segundo a qual a “prática do design deve responder a necessidade técnicas, funcionais e culturais e criar soluções que comuniquem significado e emoção que transcendam idealmente as suas formas, estrutura e fabrico” (2005, pp.11-21). Creio sinceramente que o design já está há algum tempo a flutuar nas águas dessa transcendência, embora essa transcendência não nos deixe de tocar devido ao seu especioso rosto de Janus: entre o simulacro e a solução, e entre a saturação e o desejo.
e
e
[1]Deleuze, G., 1968, Différence et Répétition, PUF, Paris.
[2] Carmelo, L., 2003, Órbitas da Modernidade, Editorial Mareantes, Lisboa.
[3]Ries, A./L., (2002) 2003, A Queda da publicidade e a ascensão das relações públicas, Editorial Notícias, Lisboa.
[4]Volli, U., (2003) 2004, Semiótica da Publicidade – A criação do texto publicitário, Edições 70, Lisboa.
[5] Carmelo, L., 2006, A Novíssima Poesia Portuguesa e a Experiência Estética Contemporânea, Publicações Europa-América, Mem Martins.
[6]Fieel, C. & P. 2005, Designing The 21st Century, Tachen, Koln.