Páginas

terça-feira, 22 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 39
Terceira Parte: O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
e

e
Bom, e para terminar o telejornal com algum suspense - a pivot ri-se com ar atormentado - deixamos aos senhores telespectadores uma história verdadeiramente admirável. Este senhor que vêem nas nossas imagens é o egípcio Muhammad Mubarak, mágico e prestidigitador, que, após alguns espectáculos no Cairo, deu uma entrevista ao Sunday Egipt onde disse que, em pleno planeta Terra, existia um homem que já tinha morrido uma vez e que, apesar disso, ainda vivia. Mas o mais interessante, segundo Mubarak, não confundir com o presidente do Egipto, é que o homem em causa é um português de gema. A locutora, em voz que dizem ser off, simula depois um sorriso de grande autenticidade e ternura e adianta - Não bastasse já isso, a verdade é que todos nós o conhecemos de nome, ou seja, tratar-se-ia de José Adão Ulisses Ferreira, imagine-se! Diz quem ouviu Mubarak que a história lhe teria sido contada, no passado Verão, durante um espectáculo seu, dado algures na Etiópia. O nome que o morto-vivo adquirira, na sua segunda vida, era qualquer coisa como Ulisses Caim dos Santos Trigo. Enfim, senhores telespectadores, não podíamos ter acabado de melhor forma este nosso telejornal. Continue connosco e tenha um óptimo serão, sempre na nossa companhia. Boa noite.
- O quê, ouviste aquilo pá? Aquele era o gajo que a gente capturou na Gago Coutinho - disse o chefe Madeira. - Já viste, ó Macedo, aquele nome diz-me qualquer coisa, não era o tipo das russas ali de Porto Brandão? - disse o senhorio da casa da Rua das Flores. - Chega aqui filho, ouve lá, esse tipo que te tramou a vida não era um tal Caim dos Santos Trigo? - disse a mãe de Porfírio, trémula, no hall da pequena casa de Campolide. - Inventam com cada coisa! Ainda ontem estivemos aqui à noite a falar dele, não é engraçado? - disse Leonor. Abel, por sua vez, levantou-se, limpou os lábios com a ajuda do enorme guardanapo branco e, ainda a mastigar, nervoso, levantou-se da mesa, correu, correu e foi dizendo que tinha pressa, que já vinha; - Deixa-me só lavar os dentes, é só um bocadinho. Disse. Abel chega entretanto à casa de banho, abre as luzes laterais do espelho, encosta-se ao mármore da bacia e encara o próprio rosto, face na face, imagem trocada e truncada pelos seus nomes sem nome, olhos nos olhos diante do espelho. E agora? O que vale é que o raio do Preste não conheceu a minha terceira vida, haja pois sossego! E Abel, naquela posição de confronto consigo mesmo a falar sozinho, a segredar, a temer talvez o pior. Mas por que não me sei eu calar, porquê? E se o Porfírio acaba por falar? Mas, também... que pode ele provar? Eu, a todos os títulos, estou morto, não é? Não é assim? Abel de olhos vermelhos em monólogo assustador, perdendo o controlo, a questionar, a questionar-se: estarei vivo? E o que é que me aconteceu, durante este tempo todo? Porquê eu? Abel passa com as mãos pela testa, parece gemer, abre e fecha os olhos, volta a monologar, a questionar, a mão agora sobre o peito... até que, por trás, sem mais, em silêncio perfeito de esfinge, surge Leonor.
- Que é que estás a fazer, querido? Não te sentes bem? O que é que se passa? O coração a galope, acelerado e eu branco, pasmado, virando-me para trás. - Querida, eu estou aqui... com umas dores estranhas no peito, sabes? - Mas vê lá se queres que eu chame o doutor, com essas dores nesse sítio não se brinca. Foi agora enquanto comias, foi? Mas... por que não me contas tu o que sentes? Se te doía o peito, devias-me logo ter avisado! Parece até que... andas estranho nos últimos tempos! Estás com suores frios, é? Eu vou chamar o doutor, está bem? Sempre é melhor. - Não, não faças isso, não vale a pena, isto já está melhor, juro. Olha, põe lá aqui a mão, vês? Vês que não estou com nenhuma arritmia? Vês? Só ia lavar os dentes, não te impressiones, se calhar comi depressa demais, não achas? - Vê lá, querido, estás tão estranho! Não queres hoje descansar? Deixa o táxi por uns dois dias, vá lá! Se quiseres eu também meto atestado e não vou à escola. - Não, isso nunca. Garanto que já estou bem, deixa-me lavar os dentes e depois saímos juntos. Vou levar-te à escola e vou para a praça que até é um sítio tranquilo, descansa que já me sinto mesmo bem, está bem? Pronto, se assim o dizes. - Mas sem pressas. - Certo. Combinado.
A meio da tarde, o telefone da praça de táxis chamou Abel à Idanha e o carro seguiu lentamente, com o condutor bastante apreensivo, curva após curva, ao longo da Avenida Veiga e Cunha, entre paredes recheadas de heras e muros claros. Ocorria-lhe a grande tromba de água por que passara a ocidente de Ceilão, ou o rosto magro e quezilento de Preste Nekemte; as mil histórias de mar e os olhos meio demoníacos do etíope que, de repente, passavam a anil baço. Sentava-se depois no chão do convés, acendia a pequena vela que trazia no macaco e contava histórias de um reino onde nasciam mulheres de bigode e homens com cornos em sangue. Em Djibouti, já na estação, perto da bilheteira, chamou-me à parte e disse - Olha, tem cuidado que nesse reino havia muitos como tu. Conheço bem o que são homens com vários cérebros, corações ou almas, sim, almas fora do corpo correcto e corpos trocados da sua alma. Essa gente é convulsiva, perigosa. Tal como César ou Napoleão. Tem cuidado, não corras riscos, isto que eu sei são histórias que vêm dos confins do tempo. Se não ligares a estas palavras, hei-de ainda falar de ti. Sorri e vim de novo ter com Porfírio que estava com o carrinho de bagagem na mão. Esta gente é toda maluca, pensava eu.
O caminho para a Idanha não é longo, mas está cheio de casas surpreendentes, inóspitas, quase coloniais, estampadas por madeiras de cor pastel, azuladas, afastando-se da estrada por quintais cheios de labirintos, fontes secas, arbustos cansados, oliveiras idosas e hortas meio abandonadas pela humidade dos penhascos. Depois, surge a Quinta da Oliveirinha, surgem as trepadeiras debruçadas em frente do chamado Pacato´s bar e surge ainda a grande mansão meio fantasma, meio assombrada, rodeada por sebes densíssimas, pinheiros bravios, tubos retorcidos para escoar as chuvadas nocturnas e, no topo, no cimo quase inacessível da cumeada, duas palmeiras a escalar o céu com os seus dois troncos muito alongados e estreitos, deixando as copas a flutuar entre nuvens, entre esse logro da respiração divina e da nossa ocultação sem nome. Abel entrou finalmente com o táxi na Idanha, depois de ter percorrido, com olhos assustados e muito vermelhos, essas mágicas palmeiras, esses misteriosos caminhos, esses terríveis prenúncios de vales e vistas, talvez mais frondosos dos que envolvem a estação de caminhos-de-ferro de Djibouti.
Preste Nekemte avisara, é verdade, estou ainda a vê-lo dependurado no comboio quase pré-histórico que partia para a Etiópia. Porfírio levantava as suas mãos de gigante e gritava até breve, até breve. E eu a sorrir, a pensar em Lisboa, na Sara, na minha infinita e desejada Stone. Eu, em estado de estupefacção total, a querer-me vingar dos desgraçados dos Coimbras e vendo naquele Preste um mero embarcadiço delirante, embora, devo reconhecer, me tivesse feito estremecer, pensar, delirar. É que parecia querer penetrar dentro do meu mistério insondável e até conhecê-lo, dominá-lo. Foi há milénios, tudo isso. Há milénios. De regresso à Praça 5 de Outubro, Abel cruza-se agora com a bizarra agência funerária da Victor Cordon que, entre paredes esquecidas, a estalar de cal e tinta esbranquiçada, ostenta, mesmo ao meio, a escultura vermelha de uma deusa pagã a desfolhar um trevo de três folhas na mão. Ao fundo, o largo, os fofos de Belas, os TIRs habituais para cima e para baixo, sacudindo os prédios frágeis desta vila que já viveu um dia a sua sonhada e nostálgica belle époque.
No dia seguinte, ‘O jornal da Capital’ fazia capa da história do morto-vivo e dizia: “Desde ontem que o túmulo de Adão Ulisses tem sido visitado por inúmeras pessoas, ligadas à lenda viva do paladino de 'Tostões e Biliões'”. E acrescentava, no interior: “Embora sem confirmação oficial, fontes seguras confirmaram a ‘O Jornal da Capital’ que a polícia judiciária está atenta ao caso e que, para além de ter desencadeado contactos internacionais sobre a estranha ocorrência, também já inspeccionou as campas dos nomes referidos pelo mágico egípcio. Ou seja, não apenas o túmulo da conhecida vedeta, Adão Ulisses, mas também a campa do meliante Ulisses Caim. A curiosa parecença dos nomes, pelo menos através da presença do enfático “Ulisses” em ambos, foi ontem motivo do programa radiofónico ‘Escárnio a bem dizer’ da ‘Emissora Regional de Lisboa’. Enfim, é um tema que promete ainda fazer correr muita tinta, quando, de início, apenas parecia matéria de chacota, ou mote para um fugaz e meteórico primeiro de Abril. De facto, é caso para dizer que o nosso estimado Adão Ulisses, de boa memória, tinha que continuar a fazer-nos rir e também a pensar, mesmo depois de morto “, concluía o porventura inspirado articulista de ‘O Jornal da Capital’.
Abel fechou o jornal, colocou-o sobre o banco e suspirou. Com o olhar parado, quase imóvel, o nosso homem parecia dizer, sem o dizer, que a vida é disfarce, farsa bem contada, dissimulada, que a vida é desdobramento, duplo. Que a vida é caçada de fantasmas, que a vida é a rapidez de disfarce, eficácia de farsa, relato convincente de dissimulação, que a vida é a tentação do duplo, que a vida é uma derrapagaem desabrida entre jogadores e presas.
Em frente, sob a luz do fim da tarde, a Casa de saúde das irmãs hospitaleiras mantinha a sua fixidez habitual. Portadas azuis sobre paredes amarelas, ocres, dóceis. Portadas em formato neo-gótico, talvez de supositório ou de foguetão, quem sabe se de fantasma? Quem me dera ser o Fritz Lang, pensou por fim Abel.