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segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 38
Terceira Parte – O tempo de Abel
Folhetim do Miniscente
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Era muito tarde, era já noite, quando Leonor entrou em casa. Chovia sobre Belas, sobre a serra, sobre as encostas do Telhal e as nuvens seguiam rasteiras em direcção às terras saloias, a Lisboa, ao interior carregado de pinheiros mansos, calcários antigos, vinhas abundantes e trevas. Preparei-me para descer do sótão até ao andar de baixo e a tempestade parecia acentuar-se; o granizo batia com força nas telhas, eram pancadas secas sem fim, medonhas. E Leonor não se calava.
- Mas... foi muito bom ter saído, sabes? A Luísa é uma antiga amiga que eu conheci, quando ia comer à cantina da câmara... porque dava aulas ali ao pé na altura, numa escola da Junqueira. Ela foi casada com o Adão Ulisses, aquele da televisão que já morreu, lembras-te? Era bom homem. Conheceste-o? Sim, imagina. Quando era mais nova, costumava dizer às minhas amigas que eu e ela, a Luísa, éramos como Evas do mesmo Adão. É que, em adolescente, tive uns namoricos de praia com ele. Depois, é evidente, nunca mais o vi; é assim mesmo a vida. Estranhas? Mas foi verdade. Para que saibas. Tem graça, não tem?
As mãos de Leonor acompanham o movimento das palavras até ao peito, parecem taças que recebem de muito longe o líquido precioso da infância. Deixa subitamente de sorrir e está agora em minha frente como se fosse no eléctrico fantasma de antigamente e os nossos pés se tocassem; falavas alto para que o motor fosse apenas música de fundo, ou um coro sumptuoso elevado pelas begónias e mimosas da grande serra; falavas alto e os miúdos perguntavam se eu podia dormir lá em casa e tu, lembro-me bem, quase coravas e dizias que não com a cabeça; as sombras das ramagens e dos sucessivos troncos de plátanos cruzavam-te o rosto como se te tornasses no imenso ecrã do meu primeiro e enternecido cinema. É isso o amor? E agora está aqui em minha frente, voltas a mexer os lábios com a maior das dádivas do mundo - Tem graça, não tem? Continuas com as mãos quase agarradas ao peito, dedos virados para o ar, para a incandescência frágil do que nos ligará; nem tu própria o sabes, nem imaginas, mas, de qualquer maneira, ainda aí estás, efusiva, doando-me a expressão mais profunda e sincera de ti, ao contares-me o teu mundo, abrindo-o sem limites.
- Tem graça, não tem?
Respondo que sim, talvez pudéssemos ir comer fora, é tarde, mas o que ressoa ao longe é o temporal, o granizo, nada a não ser o testemunho obscuro do mundo em movimento. Comemos apenas torradas, o ruído da televisão, os passos cruzados no corredor e o sono; palavras vãs, entretecidas a sós, e o que é a história de um dia por contar, ao serão? Sim, é isso mesmo, a vida toda. Foi melhor não termos saído, parece que já há menos chuva, faz-se tarde, talvez eu esteja excitada dos encontros de hoje e por isso ainda não tenha vontade de ir para a cama, e tu? Eu nem sei, estou calado há tanto tempo e o ecrã da televisão agita-se sobre legendas, cores difusas, um regatear de retratos sem tempo, nem lugar.
- Está bem, está bem, nesse caso vou à cozinha abrir mais uma cerveja. Pela rua estreita há sempre carros que passam, expiações em alvoroço, sinais de vida, companhia. O homem é um ser gregário e por isso gosta de partilhar a chuva que agora acalma, as tempestades, as palavras, o som dos motores e até os gestos. Leonor estica os braços sobre a mesa, encosta a cabeça com a mão e aponta para a televisão - Olha aquele é parecido com o Adão, não é? Aquele, quem, onde? Assusto-me, mas não o digo; olho mas nada pressinto. Sorrio e acrescento qualquer coisa sem sentido - Ah, pois é, mas quem será? Quem é?
Talvez exagere no tom da pergunta, na prosódica, no timbre carregado. Leonor volta a endireitar-se na cadeira e repete pela segunda vez
- Então não vês que é o personagem do filme? É o filho da Laurence que fugiu de casa, não estás a seguir o filme? Mas que filme ando eu a seguir na minha vida, há tanto tempo, há uma imensidão sem nome? O meu filme é este puzzle sem rosto, esta charada sem nexo; talvez seja apenas uma cabala elementar, ou tão-só o abismo de mil palavras cruzadas que entretêm o lazer ou o tempo, parece que estou a ver o médico na esplanada do Café Parque devorando-as sem parar, até ao desfecho, ao termo, ao limite.
Olha para dentro do saco da fruta e para as tetas da saloia anafada e a Dona Olga chega de braço dado com a irmã. Vêm depois os cafés, o carioca e o empregado mexe no bigode, olha para os pombais azulados, tosse. Dona Olga pergunta à Leonor se ainda quer, um dia, ser mãe. A mulher do médico sorri, falta ainda algum tempo para que o marido remate as palavras cruzadas, mas o jornal ocupa meia mesa, será impaciência, será hábito, será o quê afinal? E a irmã da Dona Olga volta à carga, os bebés são a melhor coisa que há na vida, não acha? Não, não, tudo o que é pequenino, as flores, os cãezinhos, até as miniaturas das raposas que tenho lá em minha casa. Risos. Bebo o meu chá de limão, ouço os TIRs cruzando impiedosamente o sossego de Belas, risos, e o empregado tossiu outra vez e reentrou no café. O que acha, senhor Abel?
Parou a chuva, o filme está quase a acabar e eu volto ao frigorífico. Nessa noite, Leonor agarrou-me com muita força no cotovelo do braço esquerdo. Parecia querer aí encontrar uma senha, um indício, uma ternura demorada. Que lindo braço tens tu, silenciou. Lá fora, a chuva ainda mole e leve escorrendo nos vidros; o céu lilás e macio, fazendo lembrar outros episódios mais sombrios. O que acha, senhor Abel? Minha senhora, sabe, a vida é como um jardim onde tudo nasce e cresce! Que poeta me saiu o senhor Abel! Dona Olga acrescenta: está quase sempre caladinho aí com o seu chazinho, mas quando fala diz coisas muito lindas. O médico bate com a mão na mesa; são as palavras cruzadas, deixe-o, é sempre assim, gosta de as fazer, mas aborrece-se com elas! A mulher do médico desculpa, justifica, sorri e volta a olhar de soslaio para Dona Olga. Agora percebo que a Leonorzinha esteja... tão contente e feliz, não é? Ó senhor doutor, então diga lá a palavrinha que não é capaz de descobrir? E ainda por cima só falta essa para acabar tudo? Veja lá. Pode repetir, pode? Ah bom, é o seguinte: ponto alto entre duas ou mais rios mas que não faz parte da rede hidrográfica de nenhum deles. Estranho, diz Dona Olga; Inventam cada coisa, diz a irmã da dita; deixa lá isso, hoje, diz a esposa; eu sou professora, mas desculpem... é que não sei mesmo, diz Leonor. E o senhor Abel não nos diz nada, não?
A meio da noite, Leonor acordou e olhou insistentemente para Abel, enquanto o antigo Caim e Adão dormia do outro lado desse olhar penetrante e demorado; é um olhar anatómico, carinhoso, mas, ao mesmo tempo, surpreso, e até algo admirado. É o olhar dos amados que não distingue ainda a diferença entre a ilusão óptica e a ilusão amorosa, mas, agora, parece o olhar de Leonor querer desvendar física e friamente o que os sentidos lhe dão, na realidade, a ver. A respiração tranquila, as costuras atrás da orelha, o acidente, coitadinho, como terá sido? Mas, de novo, com alguma insistência, a mão de Leonor volta a avançar sob o edredão e mexe ao de leve no cotovelo, no braço de Abel. De onde conheço eu esta carne tão íntima, este vigor, esta forma invisível? Leonor olha para a janela, salpicos de chuva sem direcção, lentos, escorrendo sobre as minúsculas vidraças e Abel quase a despertar, sob o efeito da carícia que lhe tolhe o braço, o antebraço, o estreito cotovelo, essa forma íntima e antiga. E o senhor Abel não nos diz nada, não? Olhe, acho que esse ponto se chama "o festo". Sim, "o festo". O doutor levantou a cabeça, ostentou o brilho da sua cabeleira branca impecavelmente penteada e disse baf baf baf. Dona Olga juntou as mãos e pensou que este era, de facto, o marido perfeito para a Leonorzinha.
E a mulher do médico a dizer que era já hora de irmos embora, pagam os cariocas e os cafés e eu a perguntar, então está certo senhor doutor? O homem olha para dentro do saco da fruta, volta a cabeça para o escorrega do parque infantil e diz que sim. A irmã de Dona Olga está atenta ao relógio, que é ainda cedo, diz melosamente; falta ainda tempo para o almoço... e Leonor a pensar, mas terá o médico ficado sentido? Abel põe a chave do táxi em cima da mesa, despede-se, há sorrisos de infinita afinidade, vou-te buscar à escola às 6, está bem? Leonor ficou com o mesmo olhar anatómico, carinhoso, mas, ao mesmo tempo, surpreso, e até admirado.
Por que é que o Abel se levantou da mesa, de modo tão brusco? Pergunta para si Leonor, quando o médico e a mulher já entraram no carro. Dona Olga repete: aquela senhora é mesmo muito difícil. Ao longo da vida toda, sempre, sempre deu cabo do senhor doutor, sempre; então havia lá agora razão para se irem embora! A irmã de Dona Olga concorda e Abel já está de pé e repete, vou buscar-te à escola às 6, está bem? Leonor fez o tal compasso de espera, olhou com a alma vazia por instantes, mas logo contracenou. Claro, até logo, querido; até logo e não demores. Dona Olga enternecida com o casal e temendo não ver o médico amanhã e depois de amanhã, sabe-se lá até quando.
Nessa noite, já nem sei se foi no fim-de-semana ou depois, acabei por acordar às 4 da manhã e senti a mão de Leonor à volta do meu cotovelo. Olhava-me com uma expressão enredada, enigmática, talvez fosse da minha respiração e eu perguntei:
- Estava a ressonar?
Leonor sorriu, afagou-me a testa e disse que não.
Com a ponta dos lábios muito vermelhos e encorpados.