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quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 27
Segunda Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Afinal, passaram mais de quarenta e oito horas até ao anúncio da partida, ainda em Colombo, do imenso Cruiser com destino a Roterdão. Depois de a meteorologia ter previsto o pior, apenas se haviam sentido algumas tempestades e borrascas entre os mares de Trivadrum e as proximidades do meridiano das Lakshadweep. A nova escala, entretanto anunciada pela capitania liberiano-holandesa, apontava para uma rota este-noroeste na direcção de Djibouti, já à entrada do Mar Vermelho e a sul de Maçuá, Mareb e Angote.
Ainda na capital do Sri Lanka, e depois de ultimados todos os sinais de partida, quem sabe se por feitiço do próprio destino, deu entrada na imensa nave um dos maiores amigos de há muito do português Porfírio, de nome Preste Nekemte. Segundo rezam as histórias de mar, é meio etíope, meio judeu e, sobretudo, diz-se, está sempre disposto a ornamentar as longas viagens com as mil e nevoentas histórias da sua antiga terra. No início das bonanças, na senda ainda distante das ilhas de Socotora, os três homens trabalharam e comeram juntos, mas, à noite, já em plena ascensão ao Mar Arábico, Porfírio foi quem mais narrou histórias do Oriente e de Portugal, enquanto, geralmente encostado ao beliche e mantendo até alguma prudência, o etíope, calado, se limitava a mascar um latex encarniçado com cheiro a erva.
Até que os seus olhos muito claros, cor de ostra fresca, ficaram subitamente acastanhados ou em tons de anil baço. Nessa altura, sentou-se no chão, abriu a pequena vela que transportava no bolso do macaco e, piscando o olho ao gigante de Campolide, contou:
- Entre este mar onde há dias acabou a tempestade, a antiga torre de Babel e a minha antiquíssima terra - no triangulo, cujo vértice fica no deserto de Rub’-Khalí - existiu, há milénios, um reino chamado de ‘reino da alma satisfeita’ e que não foi menos importante do que o reinos da Atlântida, de Alexandre, de César ou de Harún al-Rashíd. Na memória dos sábios, ao longo de muitas e muitas gerações, ficou escrita a palavra, o testemunho, a memória exacta. Vou-te contar, sobretudo a ti, amigo do meu amigo Porfírio, o que esse reino era para... que entendas a viagem que o destino te pediu que fizesses.
Nesse momento, Porfírio apertou a mão a Caim como que a persuadi-lo a escutar atentamente as palavras do aparente transfigurado mago do Índico. E Preste continuou:
- Nasci em Vijayanagar, em Gujarat, na Etiópia, de onde era natural metade da minha família. De resto, um dos ramos dos meus avós paternos era de Haifa e outro ramo dos meus avós maternos era originário das Ilhas de Socotra. A minha ascendência e também descendência, curiosamente, sempre se espalhou pelo território do velho reino. Talvez o meu caminho esteja assim ligado a ter que contar o que as centenas de avós de todos os meus avós sempre ouviram dizer e transmitiram. É isso o que dizem ser o mito, ou o conto.
- Mas onde é que ficava esse reino, exactamente? Perguntou Caim.
- Bom, a nossa terra estende-se, numa das fronteiras, até à extensão de cinco a seis meses em largura e, na outra das fronteiras, ninguém de verdade poderá afirmar até onde se alonga o nosso domínio. Esse lado desconhecido e de ouro está ligado ao que terá sido, durante toda a Antiguidade, o conjunto de nascentes daquele que é, hoje em dia, o Rio Nilo. Essas nascentes situavam-se então em abismos íngremes, talvez ilocalizáveis, e eram permanentemente alimentadas por águas férteis deste oceano Índico, depois de purificadas pelas conhecidas montanhas da lua. Estas montanhas eram dois gigantescos penhascos que, tal como as mamoas pré-históricas e os relevos de Ceilão, eram semelhantes a duas mamas de mulher com os respectivos mamilos, e no topo dos quais havia sempre neve e calor ao mesmo tempo, durante todo o ano; e era de lá que se via, a olho nu e entre nuvens finas, todo o reino na sua amplitude: desde a aura da Babilónia antiga, ao berço do sol e daí, entre um descomunal arco-íris de 14 cores, até à Índia posterior e anterior das monções. Contudo, sempre existiram partes desse reino que não podiam ser conhecidas; quem sabe se, porventura, essas partes são as cordilheiras verdejantes e de fogo que, neste preciso momento, sob a nossa presença, o Oceano Índico cobre e oculta? Só quem puder contar as estrelas ao céu e as areias ao mar, poderá alguma vez imaginar a dimensão das terras desse antigo reino e todo o seu poder.
- E por que tem o Prestes a necessidade de contar a história desse seu reino? Voltou a inquirir Caim.
- Porque nesse reino havia de tudo e, hoje em dia, o homem só já vive de amnésias e não mais de mitos ou contos. E porque, se há pessoa que não entende claramente o seu próprio destino - dizia-se no meu reino antigo - é porque, de qualquer maneira, ainda está presa a outro tempo, a outra encarnação, a outro devir por cumprir. É possível até, segundo o que o Porfírio me contou, que na sua vida, caro Caim de Lisboa, haja coisas por explicar que melhor se virão a aclarar... ao conhecer o que lhe conto agora. Já imaginou o que acontecia se... fosse espreitado por uma mulher sua que, a partir do céu, o visse a pensar numa outra? Não ouviu contar a história atribuída a Ibn Wahb?
-Sim.
-Pois bem, se o seu destino quis, um dia, atravessar este meu reino é porque há algo nesse seu destino que o liga a algo do meu reino. É tudo.
-Mas o que é que havia nesse seu reino, de facto?
-Olhe, tome bem atenção: nesse meu reino havia de tudo, ou seja, havia burros selvagens de cinco patas, homens de cornos e sem dentes, monstros com olhos no peito e antebraços na anca; mulheres de barba e crista, pigmeus albinos sem mãos e aves subterrâneas como minhocas. Mas nesse meu reino também escorria mel e abundava leite e ouro e, por outro lado, atente a isso, os homens adoravam troncos em forma de cruz e raízes a que chamavam assídio, cujo fim era o de afugentar os males e obrigar os maus espíritos e as esmeraldas do oriente a desaparecerem. Nesta terra, por fim, os homens viviam várias vidas e viam amiúde o céu com a mesma cor que a casca dos frutos silvestres contemplam as suas graínhas.

As noites seguintes encheram-se deste tipo de conversas e lendas. Entre o convés, a ponte, os vastos beliches do porão e a ré, Caim, Porfírio e Preste trocaram as imaginações mais dilaceradas e desconhecidas e fizeram-no como se, entre eles, desde sempre, uma intimidade profunda tivesse sido cultivada. Até que o Cruiser se aproximou do Corno de África e entrou no esplendor cintilante das águas do Golfo de Aden. Djibouti, ao fundo do novo cenário, desliza entre o planalto do continente e as praias serenas de coral e marés frágeis, precisamente onde o golfo acaba e o mítico Mar Vermelho se prenuncia. Terra cosmopolita, quente e rigorosamente branca de ponta a ponta, protegida pela baía de Tadjoura e aberta à lassidão e ao quebranto de África oriental, Djibouti vive sobretudo da passagem marítima e do término dos caminhos de ferro. À volta, a paisagem de Afar é inóspita, pedregosa, sem fim. Talvez também por isso, a cidade se feche, hoje em dia, em mistérios tal como o Rio Ambuli, subterrâneo, que é um dos alimentos potáveis da urbe.
Sob uma atmosfera quente e pesada, apesar da altura do ano, Caim e os dois amigos passaram quase uma tarde inteira na Praça Central de Menelik, antes de Preste tomar o comboio nocturno para Addis Abeba. Tempo de suspensão da alma, de encantamento do sorriso, de tradução da esperança por uma simples e despreocupada quietude; sumos de coco a entreter a delonga e o anúncio - entretanto comunicado - das próximas duas escalas da viagem: Pireu e Lisboa, antes de Roterdão. No meio da bela modorra e até prostração do tempo africano, Caim foi como que subitamente levado a cortar a respiração e quase começou a falar, mas logo acabou por ceder. Instantes depois, sem conseguir impedir-se, sem percalços e medos, disse finalmente a Porfírio e ao enigmático Preste Nekemte o que tinha para dizer:
- Também conheço reinos sem explicação e que, por sinal, não são doutro tempo, ou seja, por outras palavras, eu já vivi uma vida antes desta e sei muito bem o que digo. E conto-vos mais: enquanto morri, vivi. Ou seja, enquanto me faziam o funeral, apareci na mesma cidade de Lisboa sentado num banco de jardim. Jamais uma tal coisa poderá ser percebida, explicada, ou mesmo dita. Não sei porquê, se é da imobilidade mágica desta cidade, se foram as vossas histórias contagiantes de gente de mar e do mito e do conto, mas a verdade é que, por trás desta minha recente tatuagem no braço, existia uma outra pessoa completamente diferente. Acreditem que já fui cantor e homem de televisão de muito importância no meu país e que, desde há algum tempo, voltei a ser outra coisa, não sei bem o quê. Nesta nova vida, ouve quem me traísse. Vou agora regressar a Lisboa para ajustar contas, para fazer o que os antigos heróis faziam com as suas próprias mãos. Regresso... para agir como essa mulher que estava no céu, segundo a lenda de Ibn Wahb; ou seja, que penalizou a quem antes - na terra - ela mesma fora leal. Penso que foi Deus ou o fado quem fez com que nos encontrássemos para eu melhor entender o que fazer... e sobretudo para ter coragem de contar o que vos contei agora. Não sei bem mais o que dizer...
Preste levou o coco à boca e, depois de cautelosamente pousar a palhinha sobre a mesa, disse com lentidão:
- Também é uma boa história, essa!
Porfírio, olhando de frente para Preste Rekemte, enviou para longe o fumo do cigarro de Ceilão e exclamou, meio a sorrir, meio a folgar com o ambiente de perfeita indolência:
- É, de facto, uma óptima história!