O Trevo de Abel - Episódio 26
Segunda Parte: O tempo de Adão
Segunda Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Da amurada do imenso Cruiser, Caim viu a tranquila Península de Malaca chegar ao seu termo, entre neblinas, obscuridades e o rochedo mágico de Batu-Ribn que é adorado pelos pigmeus de Semang. Mais a sul, algumas horas depois, a cidade dos Leões, ou Singapura, surgiria subitamente luminosa no envidraçado dos seus arranha-céus que mais pareciam submergir das águas baças e espessas onde abundam sobretudo tonkogs, as famosas barcaças de junco, caruma e velas escuras de que é alimentada a grande metrópole flutuante. Singapura é o ancoradouro por excelência onde a Ásia se inicia e acaba e, ao mesmo tempo, é o legendário entreposto que une o Mar da China ao Grande Índico. Aqui, quase todos os navios do universo fazem escala e as histórias que se contam ficam sempre a meio, por reinventar; até porque os seus narradores vivem de visões, de devaneios da perpétua viagem; de sonhos de passagem, de miragens e desejos, talvez, quem sabe, à procura de um fim predestinado.
Ao início da tarde, Porfírio e Caim juntaram-se a alguns portugueses de Malaca, amigos do gigante das sete tatuagens de Campolide. Comeram pato de Bornéu e porco doce chinês na Ground Road e, durante umas horas, depois da nostalgia de uma prova de vinho de Colares, secularmente engarrafado, visitaram a River Valley, a Hill Street e o conhecido jardim botânico. Logo que a noite começou a cair, húmida e quente, o Cruiser retomou finalmente as suas manobras e, sob o olhar contemplativo de mil malaios empoleirados em autênticas ilhas de estacas e rede, Singapura haveria irremediavelmente de ficar para trás, sob as chuvas calmas e regulares que animam a proximidade meridiana do equador. Pela frente, a longa travessia destina-se agora à escala de Colombo, no Sri Lanka. Rota bem definida, mais ou menos paralela ao equador e reservando a Caim, ao longo do dia, algum trabalho de limpeza apenas no convés e junto à ré, onde a grande hélice já vai desenhando um leque de espuma a perder de vista. A carga do colossal Cruiser é constituída basicamente por automóveis japoneses, produtos têxteis e material electrónico. Foi com lentidão que esta grande massa de aço, durante noites e noites longas, começou por penetrar no mar de Andaman.
Porfírio terá protegido o desamparado Caim, conseguiu arranjar-lhe trabalho leve e até um beliche razoável no Cruiser transatlântico, embora as histórias entre ambos estejam ainda e sempre por revelar; por acontecer. Provavelmente, nunca nada virá a explicar por que é que uma mão se dá a outra, num momento em que, de repente, o futuro deixa de existir e o presente se torna num espectro sem silhueta, ou mesmo numa cova negra sem qualquer saída. Há um tempo atrás, Sara aparecera em Barcelona a cumprir esse mesmo papel e agora, sem mais, nos antípodas do seu mundo e de uma primeira vida já vivida, Caim voltava a olhar para o mar da existência com uma esperança algo surpreendida. Não é raro que Caim enjoe e viage dias a fio quase deitado, ou reclinado - convulsivo, sôfrego e lunático; noutras alturas, revê apenas o espectáculo distante de uma imensa tromba de água no horizonte, como aconteceu já a sul das Ilhas de Nincobar; ou empurra com a vassoura baldes e mais baldes de água suja com que a tradição matinal manda limpar o convés.
Ao longe, duas semanas depois, a Ilha de Ceilão surge como um verdadeiro paraíso, ou seja, como o local onde os sete céus coincidem com a extremidade do Pico de Adão ou com o ponto mais alto do Monte Pedrotagalla, para já não falar da elevação de Kirigalpotta, venerada há séculos por budistas. Durante a aproximação à grande ilha, Porfírio, encostado à murada, aproveitando as últimas folgas no trabalho de bordo, contou a Caim algumas das histórias acerca do chamado umbigo do mundo, tal como a gíria marítima lhe chama, relatadas, ao longo dos tempos, por embarcadiços ou estivadores seus amigos:
- O que me disseram sempre... foi que, aqui, há muito milhares de anos, esta ilha também se chamava a ilha de Sarandib e que o Pico de Adão era então conhecido por Monte do Jacinto. Ora, o paraíso, como diziam os antigos nessa altura, teria nos píncaros do Monte de Jacinto a sua parte intermédia, o que quer dizer, segundo gente que sabe, velhos sábios... até porque dantes as pessoas duravam mil anos, ou mesmo mais; o que quer dizer, dizia eu, que foi nesse Pico altíssimo - Porfírio, de cigarro na boca, aponta agora na direcção da montanha - que Adão e Eva viveram a cena da maçã proibida, estás a ver do que falo, não é? Segundo essa lenda... que aqui mesmo, nestas praias, toda a gente conhece, é desse ponto alto do paraíso que, um dia, se lançaram à terra as sementes dos homens justos e mais: todos os que pecam nesta vida... voltam também, mas apenas em espírito, a esse mesmo paraíso do Monte Jacinto, embora só depois de experimentar o fogo do inferno que se esconde, debaixo da ilha de Sarandib, no fundo da terra. Acerca disto tudo, há uma história que um marinheiro do rochedo de Iémen, aliás meu conhecido há mais de vinte anos, repetia todas as noites nestas nossas andanças; essa história, vou ver se ainda me lembro bem dela, dizia assim:
- A uma das mulheres que vivia no paraíso, falou uma voz que vinha das nuvens mais altas do Pico de Adão e disse-lhe: Tens porventura o desejo de ver o teu esposo que ainda vive no mundo dos terrenos? E ela, essa mulher que morrera jovem e bela, pairando sobre os picos do Monte Jacinto, respondeu que sim. E logo, de imediato, os véus lhe foram retirados do rosto e com eles as nuvens que tudo cobriam, podendo a dita mulher, a partir daí, ver claramente este nosso planeta de mortais; ao olhar o mundo, nesse preciso momento, viu a mulher o seu marido deitado num pequeno barco de pescadores de Negombo. Enquanto atentamente olhava para o marido, a voz que vinha das nuvens disse à mulher que não se esquecesse de o desejar mais tarde no paraíso, do mesmo modo que, antes, ela sempre o desejara após as longas noites de pesca. No entanto, passado alguns instantes, a mulher acabou por verificar que os pensamentos do marido estavam agora absorvidos por uma outra mulher, também habitante do mundo dos mortais. E, recolocando de novo o véu no seu olhar choroso, a mulher do paraíso gritou e gemeu com ardor, na direcção das nuvens silenciosas do Monte Jacinto: Ó desgraçado, por que me abandonaste? Não vês que esses teus perversos pensamentos e tentações hão-de apenas durar umas quantas noites? Diz a lenda que, nessa mesma semana, uma tempestade fulminante e assombrosa o levou em trágico naufrágio. E, desse modo, foi o homem direitinho ao fogo infernal que se esconde, como já disse, debaixo destas águas, na profundidade da Ilha de Ceilão. Dizia o meu amigo do Iémen, o Basan, que isto era uma lenda antiga contada por um homem muito sábio de nome Ibn Wahb.
- Sabes muitas histórias, Porfírio... aprendeste-as todas no mar?
- Tudo o que aprendi, aprendi-o aqui, no mar, entre portos e lendas... e muitas outras coisas. Sou capaz de misturar línguas, de comer copos de vidro, assoprar lume e fazer... como é que dizem... o kamasutra com ervas de Quilon e pau de Nellore. Posso não ter estudado, mas sou capaz de passar horas e horas a contar-te coisas que já vivi e histórias que nem te passam pela cabeça, homem!
-Também eu tenho uma história que não passa pela cabeça de nenhum mortal, juro.
Porfírio apenas sorriu e nem chegou a reagir à inesperada arremetida de Caim.
Fez-se silêncio, qual coro sigiloso de olhares mútuos, quem sabe, se distantes, se próximos? Após a curta pausa, deu-se início à amarração. Ambos os homens deram então uma rápida volta ao convés e esforçaram-se depois nas tarefas de acostagem. Dos lados de Comorim, a brisa é agora morna, amena; convidaria a um descanso que ninguém aqui chega a sonhar ou sequer a imaginar. No porto desta cidade de Colombo, junto ao cais, aparece gente com turbante alaranjado e braceletes de metal; surgem flautas para ofídios e muitas bancas de tecidos brilhantes e coloridos; mais ao longe, vêem-se linhas densas de coqueiros e, de entre a água lodosa e sombria, desponta um cheiro acre, indefinível, onde se mistura carvão, folhagem de chá, talvez caril. Aproxima-se um dia de paragem - mera escala técnica - que, no entanto, anuncia muito trabalho de braços, muito vaivém entre doca, porão e convés.
- Maldito seja aquele Correia, aquele Coimbra e aquele desnaturado do Did-Abha, estilo dentinho de coelho tímido! Maldito seja quem tramou esta minha segunda vida que a primeira apagou. E eu, agora... obrigado a estes sacrifícios e trabalhos, por paga e castigo, talvez... a redimir-me, a expiar-me, a resgatar-me... mas de quê?
Ao início da tarde, Porfírio e Caim juntaram-se a alguns portugueses de Malaca, amigos do gigante das sete tatuagens de Campolide. Comeram pato de Bornéu e porco doce chinês na Ground Road e, durante umas horas, depois da nostalgia de uma prova de vinho de Colares, secularmente engarrafado, visitaram a River Valley, a Hill Street e o conhecido jardim botânico. Logo que a noite começou a cair, húmida e quente, o Cruiser retomou finalmente as suas manobras e, sob o olhar contemplativo de mil malaios empoleirados em autênticas ilhas de estacas e rede, Singapura haveria irremediavelmente de ficar para trás, sob as chuvas calmas e regulares que animam a proximidade meridiana do equador. Pela frente, a longa travessia destina-se agora à escala de Colombo, no Sri Lanka. Rota bem definida, mais ou menos paralela ao equador e reservando a Caim, ao longo do dia, algum trabalho de limpeza apenas no convés e junto à ré, onde a grande hélice já vai desenhando um leque de espuma a perder de vista. A carga do colossal Cruiser é constituída basicamente por automóveis japoneses, produtos têxteis e material electrónico. Foi com lentidão que esta grande massa de aço, durante noites e noites longas, começou por penetrar no mar de Andaman.
Porfírio terá protegido o desamparado Caim, conseguiu arranjar-lhe trabalho leve e até um beliche razoável no Cruiser transatlântico, embora as histórias entre ambos estejam ainda e sempre por revelar; por acontecer. Provavelmente, nunca nada virá a explicar por que é que uma mão se dá a outra, num momento em que, de repente, o futuro deixa de existir e o presente se torna num espectro sem silhueta, ou mesmo numa cova negra sem qualquer saída. Há um tempo atrás, Sara aparecera em Barcelona a cumprir esse mesmo papel e agora, sem mais, nos antípodas do seu mundo e de uma primeira vida já vivida, Caim voltava a olhar para o mar da existência com uma esperança algo surpreendida. Não é raro que Caim enjoe e viage dias a fio quase deitado, ou reclinado - convulsivo, sôfrego e lunático; noutras alturas, revê apenas o espectáculo distante de uma imensa tromba de água no horizonte, como aconteceu já a sul das Ilhas de Nincobar; ou empurra com a vassoura baldes e mais baldes de água suja com que a tradição matinal manda limpar o convés.
Ao longe, duas semanas depois, a Ilha de Ceilão surge como um verdadeiro paraíso, ou seja, como o local onde os sete céus coincidem com a extremidade do Pico de Adão ou com o ponto mais alto do Monte Pedrotagalla, para já não falar da elevação de Kirigalpotta, venerada há séculos por budistas. Durante a aproximação à grande ilha, Porfírio, encostado à murada, aproveitando as últimas folgas no trabalho de bordo, contou a Caim algumas das histórias acerca do chamado umbigo do mundo, tal como a gíria marítima lhe chama, relatadas, ao longo dos tempos, por embarcadiços ou estivadores seus amigos:
- O que me disseram sempre... foi que, aqui, há muito milhares de anos, esta ilha também se chamava a ilha de Sarandib e que o Pico de Adão era então conhecido por Monte do Jacinto. Ora, o paraíso, como diziam os antigos nessa altura, teria nos píncaros do Monte de Jacinto a sua parte intermédia, o que quer dizer, segundo gente que sabe, velhos sábios... até porque dantes as pessoas duravam mil anos, ou mesmo mais; o que quer dizer, dizia eu, que foi nesse Pico altíssimo - Porfírio, de cigarro na boca, aponta agora na direcção da montanha - que Adão e Eva viveram a cena da maçã proibida, estás a ver do que falo, não é? Segundo essa lenda... que aqui mesmo, nestas praias, toda a gente conhece, é desse ponto alto do paraíso que, um dia, se lançaram à terra as sementes dos homens justos e mais: todos os que pecam nesta vida... voltam também, mas apenas em espírito, a esse mesmo paraíso do Monte Jacinto, embora só depois de experimentar o fogo do inferno que se esconde, debaixo da ilha de Sarandib, no fundo da terra. Acerca disto tudo, há uma história que um marinheiro do rochedo de Iémen, aliás meu conhecido há mais de vinte anos, repetia todas as noites nestas nossas andanças; essa história, vou ver se ainda me lembro bem dela, dizia assim:
- A uma das mulheres que vivia no paraíso, falou uma voz que vinha das nuvens mais altas do Pico de Adão e disse-lhe: Tens porventura o desejo de ver o teu esposo que ainda vive no mundo dos terrenos? E ela, essa mulher que morrera jovem e bela, pairando sobre os picos do Monte Jacinto, respondeu que sim. E logo, de imediato, os véus lhe foram retirados do rosto e com eles as nuvens que tudo cobriam, podendo a dita mulher, a partir daí, ver claramente este nosso planeta de mortais; ao olhar o mundo, nesse preciso momento, viu a mulher o seu marido deitado num pequeno barco de pescadores de Negombo. Enquanto atentamente olhava para o marido, a voz que vinha das nuvens disse à mulher que não se esquecesse de o desejar mais tarde no paraíso, do mesmo modo que, antes, ela sempre o desejara após as longas noites de pesca. No entanto, passado alguns instantes, a mulher acabou por verificar que os pensamentos do marido estavam agora absorvidos por uma outra mulher, também habitante do mundo dos mortais. E, recolocando de novo o véu no seu olhar choroso, a mulher do paraíso gritou e gemeu com ardor, na direcção das nuvens silenciosas do Monte Jacinto: Ó desgraçado, por que me abandonaste? Não vês que esses teus perversos pensamentos e tentações hão-de apenas durar umas quantas noites? Diz a lenda que, nessa mesma semana, uma tempestade fulminante e assombrosa o levou em trágico naufrágio. E, desse modo, foi o homem direitinho ao fogo infernal que se esconde, como já disse, debaixo destas águas, na profundidade da Ilha de Ceilão. Dizia o meu amigo do Iémen, o Basan, que isto era uma lenda antiga contada por um homem muito sábio de nome Ibn Wahb.
- Sabes muitas histórias, Porfírio... aprendeste-as todas no mar?
- Tudo o que aprendi, aprendi-o aqui, no mar, entre portos e lendas... e muitas outras coisas. Sou capaz de misturar línguas, de comer copos de vidro, assoprar lume e fazer... como é que dizem... o kamasutra com ervas de Quilon e pau de Nellore. Posso não ter estudado, mas sou capaz de passar horas e horas a contar-te coisas que já vivi e histórias que nem te passam pela cabeça, homem!
-Também eu tenho uma história que não passa pela cabeça de nenhum mortal, juro.
Porfírio apenas sorriu e nem chegou a reagir à inesperada arremetida de Caim.
Fez-se silêncio, qual coro sigiloso de olhares mútuos, quem sabe, se distantes, se próximos? Após a curta pausa, deu-se início à amarração. Ambos os homens deram então uma rápida volta ao convés e esforçaram-se depois nas tarefas de acostagem. Dos lados de Comorim, a brisa é agora morna, amena; convidaria a um descanso que ninguém aqui chega a sonhar ou sequer a imaginar. No porto desta cidade de Colombo, junto ao cais, aparece gente com turbante alaranjado e braceletes de metal; surgem flautas para ofídios e muitas bancas de tecidos brilhantes e coloridos; mais ao longe, vêem-se linhas densas de coqueiros e, de entre a água lodosa e sombria, desponta um cheiro acre, indefinível, onde se mistura carvão, folhagem de chá, talvez caril. Aproxima-se um dia de paragem - mera escala técnica - que, no entanto, anuncia muito trabalho de braços, muito vaivém entre doca, porão e convés.
- Maldito seja aquele Correia, aquele Coimbra e aquele desnaturado do Did-Abha, estilo dentinho de coelho tímido! Maldito seja quem tramou esta minha segunda vida que a primeira apagou. E eu, agora... obrigado a estes sacrifícios e trabalhos, por paga e castigo, talvez... a redimir-me, a expiar-me, a resgatar-me... mas de quê?