O Trevo de Abel - Episódio 20
Segunda Parte: O tempo de Adão
Segunda Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
e
e
e
e
Acordava de noite e era invadido por calores, tinha mesmo dificuldade em dormir; sentia os pulsos apertados e o sangue, cheio de bravura e sem qualquer tédio, percorria todos os membros e extremidades do corpo. Nos braços, barrigas das pernas, junto às coxas, nas virilhas, tudo parecia ir explodir como se cabos de aço, vindos de dentro, quisessem crescer, dilatar-se, opor-se ao fechamento da pele, à crisálida do próprio corpo. Abria muita a boca e os dentes premiam sobre gengivas, sobre o céu-da-boca inquieto e, nessa altura, advinha-me uma incontrolada vontade de rugir, de bramir; abria então ainda mais os braços e desesperava por arrebatar ou agarrar qualquer coisa, fossem travesseiros, lençóis amarfanhados, a cabeceira almofadada da cama. Levantava-me, espreitava pela janela as garrafas partidas ao longo da calçada, a movida, as pálidas fachadas, os nevoeiros rasteiros, os cortejos ruidosos de gente muito jovem e, por trás, o sol querendo levantar-se, lento, para os lados do mar diante da Montanha de Montjuic. Algo, de facto, despertava fisicamente em mim que não conhecia.
Quando, escorrido em suor, reentrava com vagar na cama e via aquela cara ou ventura de uma Sharon Stone deslumbrada e respirando de modo cadenciado, lábios ligeiramente abertos, ou, às vezes, a ressonar com cálida avidez, juro que não conseguia parar. Sara sabia como acordar, reconhecia o delírio da húmida estrela matinal, pois, logo que a minha língua pousava num dos altos do calcanhar e, minutos depois, perto do joelho, já ela sorria com a ondulação integral do corpo até que, em segundos, subitamente, sentia as margens ou as veias do pescoço mordido, os cabelos suspensos, os dedos percorrendo o ânus ou o ouvido, a boca perfilhando o espantoso membro; os dentes descendo ao longo da coluna, vértebra a vértebra e, já a luz raiaria pelos vidros foscos até ao tal tapete que tem desenhado um dragão com língua de sangue, quando entrávamos um no outro e aí ficávamos a dançar até ao fim da manhã, até ao fim do mundo; no zénite de muitas águas profundas, vezes e vezes seguidas, rumorejantes, ofegantes, perante o pasmo mútuo, deleitoso e os gemidos fantásticos de Sara e a admiração de Caim que, calado e sem cessar, revia nos olhos da Stone o admirável frémito que era o seu e a potência e longevidade que nunca conhecera até hoje.
Sara adorava entregar-se aos deuses mais recônditos do mistério de Afrodite e toda a sua estimação mais impenetrável aqui se apagava, através do puro gozo, das delícias que lhe alteravam até a cor da pele, o brilho insaciado da carne, o incrível rubor dos lábios. Sara transfigurava em fogo os longos braços e colocava Caim à frente, atrás, por baixo ou ao leme das suas belas coxas que eram como uma nuvem de quadris ágeis, liquefeitos e leais à magnífica contenda, deixando sob os braços tatuados e trémulos os dois mamilos em rosa, dilatados como botões onde a mácula valia por regozijo e pela mais antiga das volúpias. Depois levantavam-se e avançavam, pé ante pé, até ao vão da janela, deixavam cair a mesa das revistas, enrolavam o dragão com língua de sangue que o tapete embalaria e, num novo frenesi ou auge ou pico, o grito de Sara ecoava pelo topo do prédio, pelas estrelas e céus catalães, e os seus cabelos muito louros colavam-se espalmados aos vidros foscos das águas-furtadas, enquanto o peito, a proa e a cabeça viscosa e sólida de Caim ia e vinha, insistente e sem fim. E quando chegavam à mesa da cozinha, exaustos e com olhos sanguíneos, pele com manchas de carmesim e rufo e alagados pelo consolo mágico do derradeiro suor, Sara interpunha o cortinado de renda entre ela e Caim e agarrava com as mãos, sôfregas e cúpidas, o ainda desmedido falo do tatuado e entregava depois a delicada boca ao clímax decisivo da já longa manhã de magos e desejos cadentes.
Até que, sem forças e após horas de abnegada entrega, caíam lado a lado sobre a corticite circular da exígua dispensa, debaixo de alguns enchidos dependurados e de prateleiras com latas de tomate, massa e conservas, iluminados pelo reflexo difuso do esplêndido Jesus insuflado em plástico laranja. Que outra coisa podia unir uma mulher como Sara e um homem reencontrado como Caim, senão este ritual que ambos agora descobriam por excessivo e novo? Que interessava o que um ou outro pudessem fazer na vida, se ambos agora sabiam que, em qualquer momento, toda esta deleitação podia sempre voltar a acontecer? Sara e Caim olhavam e inventavam um riso profundo, comovido, mas sempre algo enigmático. Como se o jogo, porventura, ficasse por ganhar e não, como se esperaria, em absoluto e mútuo banquete de júbilos mútuos. Por isso, sempre lado a lado e após tanto verdor e aventura, chupavam com longa palheta dois sumos de pêssego até ao fim e mantinham-se depois em silêncio, a tentarem talvez descortinar o fundo cavado de tanta inspiração, fúria e claro arrebatamento. Quando a geleia já se arrastava sobre o pão de calo, Sara levava rapidamente o dedo à boca e, de imediato, surpreendia o ressuscitado português com um alento novo que se virava sobretudo para as coisas práticas. Que era preciso ir buscar duas ucranianas que chegavam hoje de Saragoça à estação, - Que é preciso, Caim, que vás à frente para Lisboa e até podes levar alguma plata, mas tens que te desenrascar também e arranjar uma casa mais no centro e outra mais recolhida. Podias levar duas ou três chavalas contigo e algum avanço, enquanto eu acabava aqui de preparar o terreno com muito cuidado, não haja ainda quem descubra tudo e nos limpe o sebo de uma única assentada, estás a ver?
Caim, por seu lado, vestia uma camisola de alças, desportista e larga, deixando à vista o longo zepelim tatuado com duplas barbatanas na ponta, fazendo lembrar o sinal que o seu incógnito pai teria nas costas, tal como lho havia dito em petiz a avó Maria Alba; vestia calças de ganga e ostentava relógio transparente da swatch, quando não suspirava por narinas largas, estranhando ao espelho, durante o ofício da barba, os lábios espessos, a face mais estreita, o olhar saliente, a testa mais ovóide, larga e, sempre, sempre, a sua recentíssima e devoradora explosão sexual. Depois dizia que sim, que estava a ver muito bem; respondia assim descontraído à voz demorada de Sara e não parecia importar-se com nada, abruptamente liberto e até aliviado, como se a fortuna e a sua estreita roda o tivessem finalmente recolhido em barca sobre águas calmas e já não errantes. Assobiava e recorria ao gel que a Stone lhe oferecera durante a curta estada em Lisboa; comiam tapas na rua, chapaditas e bocadillos com cerveja ou vinho, arrastavam-se deste modo até às três da tarde e depois, mais cigarro menos cigarilha, separavam-se, iam à vida, porque a nova via combinada urgia planos, acção, contratos.
Caim ia ver os treinos do Barça, subia e descia avenidas e escadas de prédios; falava sozinho, telefonava, congeminava e sorria; entrava no Maremagnum ou na Doca olímpica para espreitar o ambiente, comprava revistas e lotarias, visitava lojas de animais ou então passava pelo bar do uruguaio que tinha dois dentes de ferrão e que era adepto férreo dos amarelos e negros do Peñarol; às vezes, ia mesmo até à estação dos caminhos de ferro buscar umas meninas louras e jovens, cujas fotografias guardava no bolso de trás das calças, e ainda lhes arranjava quarto, comida e prometia-lhes quase sempre barras de ouro sobre azul na foz do Tejo; quando não as testava logo, às vezes pela calada, outras vezes não, em plenas traseiras do Hotel Oriente, tal era afinal a repleção e a saciedade do antigo Adão.
Algo, de facto, despertava em mim que antes não conhecia, pensava. Como é que isto iria acabar, de que modo? A pouco e pouco deixou de ter quaisquer saudades da gente que conhecera na outra vida; família, amigos, colegas da televisão que há dias ainda lembrava com intensidade. A própria voz de galo cantor parecia ter-se quase eclipsado de um momento para o outro, tal era a secura vocal que experimentava sempre que, a sós, face às cascatas do Parque da Ciutadella, ensaiava o início de um fado ou de uma canção de embalar.
Duas semanas depois da segunda chegada a Barcelona, Sara foi ao aeroporto despedir-se de Caim que, com mais duas polacas e uma russa um pouco magra, agora seguia para Lisboa com o intuito de preparar a futura casa de repouso (ou discoteca) das Tágides de Ulisses. Sara parecia estar a realizar um desejo seu, já que, ao homem que nunca tivera e que sempre sonhara - dócil, másculo e sôfrego sexualmente -, se aliava a possibilidade de independência, a mudança de lugar e até de vida. Caim, à sua maneira, parecia estar antes a realizar um acto de auto-hipnotismo, já que aliava ao esquecimento do seu maior tabu - a segunda vida após a insondável morte - uma metamorfose real, a que não faltava ímpeto, mulher, desejo, dinheiro e sobretudo a redescoberta de facetas radicalmente novas em si, incluindo as físicas.
Quando, escorrido em suor, reentrava com vagar na cama e via aquela cara ou ventura de uma Sharon Stone deslumbrada e respirando de modo cadenciado, lábios ligeiramente abertos, ou, às vezes, a ressonar com cálida avidez, juro que não conseguia parar. Sara sabia como acordar, reconhecia o delírio da húmida estrela matinal, pois, logo que a minha língua pousava num dos altos do calcanhar e, minutos depois, perto do joelho, já ela sorria com a ondulação integral do corpo até que, em segundos, subitamente, sentia as margens ou as veias do pescoço mordido, os cabelos suspensos, os dedos percorrendo o ânus ou o ouvido, a boca perfilhando o espantoso membro; os dentes descendo ao longo da coluna, vértebra a vértebra e, já a luz raiaria pelos vidros foscos até ao tal tapete que tem desenhado um dragão com língua de sangue, quando entrávamos um no outro e aí ficávamos a dançar até ao fim da manhã, até ao fim do mundo; no zénite de muitas águas profundas, vezes e vezes seguidas, rumorejantes, ofegantes, perante o pasmo mútuo, deleitoso e os gemidos fantásticos de Sara e a admiração de Caim que, calado e sem cessar, revia nos olhos da Stone o admirável frémito que era o seu e a potência e longevidade que nunca conhecera até hoje.
Sara adorava entregar-se aos deuses mais recônditos do mistério de Afrodite e toda a sua estimação mais impenetrável aqui se apagava, através do puro gozo, das delícias que lhe alteravam até a cor da pele, o brilho insaciado da carne, o incrível rubor dos lábios. Sara transfigurava em fogo os longos braços e colocava Caim à frente, atrás, por baixo ou ao leme das suas belas coxas que eram como uma nuvem de quadris ágeis, liquefeitos e leais à magnífica contenda, deixando sob os braços tatuados e trémulos os dois mamilos em rosa, dilatados como botões onde a mácula valia por regozijo e pela mais antiga das volúpias. Depois levantavam-se e avançavam, pé ante pé, até ao vão da janela, deixavam cair a mesa das revistas, enrolavam o dragão com língua de sangue que o tapete embalaria e, num novo frenesi ou auge ou pico, o grito de Sara ecoava pelo topo do prédio, pelas estrelas e céus catalães, e os seus cabelos muito louros colavam-se espalmados aos vidros foscos das águas-furtadas, enquanto o peito, a proa e a cabeça viscosa e sólida de Caim ia e vinha, insistente e sem fim. E quando chegavam à mesa da cozinha, exaustos e com olhos sanguíneos, pele com manchas de carmesim e rufo e alagados pelo consolo mágico do derradeiro suor, Sara interpunha o cortinado de renda entre ela e Caim e agarrava com as mãos, sôfregas e cúpidas, o ainda desmedido falo do tatuado e entregava depois a delicada boca ao clímax decisivo da já longa manhã de magos e desejos cadentes.
Até que, sem forças e após horas de abnegada entrega, caíam lado a lado sobre a corticite circular da exígua dispensa, debaixo de alguns enchidos dependurados e de prateleiras com latas de tomate, massa e conservas, iluminados pelo reflexo difuso do esplêndido Jesus insuflado em plástico laranja. Que outra coisa podia unir uma mulher como Sara e um homem reencontrado como Caim, senão este ritual que ambos agora descobriam por excessivo e novo? Que interessava o que um ou outro pudessem fazer na vida, se ambos agora sabiam que, em qualquer momento, toda esta deleitação podia sempre voltar a acontecer? Sara e Caim olhavam e inventavam um riso profundo, comovido, mas sempre algo enigmático. Como se o jogo, porventura, ficasse por ganhar e não, como se esperaria, em absoluto e mútuo banquete de júbilos mútuos. Por isso, sempre lado a lado e após tanto verdor e aventura, chupavam com longa palheta dois sumos de pêssego até ao fim e mantinham-se depois em silêncio, a tentarem talvez descortinar o fundo cavado de tanta inspiração, fúria e claro arrebatamento. Quando a geleia já se arrastava sobre o pão de calo, Sara levava rapidamente o dedo à boca e, de imediato, surpreendia o ressuscitado português com um alento novo que se virava sobretudo para as coisas práticas. Que era preciso ir buscar duas ucranianas que chegavam hoje de Saragoça à estação, - Que é preciso, Caim, que vás à frente para Lisboa e até podes levar alguma plata, mas tens que te desenrascar também e arranjar uma casa mais no centro e outra mais recolhida. Podias levar duas ou três chavalas contigo e algum avanço, enquanto eu acabava aqui de preparar o terreno com muito cuidado, não haja ainda quem descubra tudo e nos limpe o sebo de uma única assentada, estás a ver?
Caim, por seu lado, vestia uma camisola de alças, desportista e larga, deixando à vista o longo zepelim tatuado com duplas barbatanas na ponta, fazendo lembrar o sinal que o seu incógnito pai teria nas costas, tal como lho havia dito em petiz a avó Maria Alba; vestia calças de ganga e ostentava relógio transparente da swatch, quando não suspirava por narinas largas, estranhando ao espelho, durante o ofício da barba, os lábios espessos, a face mais estreita, o olhar saliente, a testa mais ovóide, larga e, sempre, sempre, a sua recentíssima e devoradora explosão sexual. Depois dizia que sim, que estava a ver muito bem; respondia assim descontraído à voz demorada de Sara e não parecia importar-se com nada, abruptamente liberto e até aliviado, como se a fortuna e a sua estreita roda o tivessem finalmente recolhido em barca sobre águas calmas e já não errantes. Assobiava e recorria ao gel que a Stone lhe oferecera durante a curta estada em Lisboa; comiam tapas na rua, chapaditas e bocadillos com cerveja ou vinho, arrastavam-se deste modo até às três da tarde e depois, mais cigarro menos cigarilha, separavam-se, iam à vida, porque a nova via combinada urgia planos, acção, contratos.
Caim ia ver os treinos do Barça, subia e descia avenidas e escadas de prédios; falava sozinho, telefonava, congeminava e sorria; entrava no Maremagnum ou na Doca olímpica para espreitar o ambiente, comprava revistas e lotarias, visitava lojas de animais ou então passava pelo bar do uruguaio que tinha dois dentes de ferrão e que era adepto férreo dos amarelos e negros do Peñarol; às vezes, ia mesmo até à estação dos caminhos de ferro buscar umas meninas louras e jovens, cujas fotografias guardava no bolso de trás das calças, e ainda lhes arranjava quarto, comida e prometia-lhes quase sempre barras de ouro sobre azul na foz do Tejo; quando não as testava logo, às vezes pela calada, outras vezes não, em plenas traseiras do Hotel Oriente, tal era afinal a repleção e a saciedade do antigo Adão.
Algo, de facto, despertava em mim que antes não conhecia, pensava. Como é que isto iria acabar, de que modo? A pouco e pouco deixou de ter quaisquer saudades da gente que conhecera na outra vida; família, amigos, colegas da televisão que há dias ainda lembrava com intensidade. A própria voz de galo cantor parecia ter-se quase eclipsado de um momento para o outro, tal era a secura vocal que experimentava sempre que, a sós, face às cascatas do Parque da Ciutadella, ensaiava o início de um fado ou de uma canção de embalar.
Duas semanas depois da segunda chegada a Barcelona, Sara foi ao aeroporto despedir-se de Caim que, com mais duas polacas e uma russa um pouco magra, agora seguia para Lisboa com o intuito de preparar a futura casa de repouso (ou discoteca) das Tágides de Ulisses. Sara parecia estar a realizar um desejo seu, já que, ao homem que nunca tivera e que sempre sonhara - dócil, másculo e sôfrego sexualmente -, se aliava a possibilidade de independência, a mudança de lugar e até de vida. Caim, à sua maneira, parecia estar antes a realizar um acto de auto-hipnotismo, já que aliava ao esquecimento do seu maior tabu - a segunda vida após a insondável morte - uma metamorfose real, a que não faltava ímpeto, mulher, desejo, dinheiro e sobretudo a redescoberta de facetas radicalmente novas em si, incluindo as físicas.