O Trevo de Abel – Episódio 17
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
e
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Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Olho para o espelho, após horas de anestesia e algum repouso. Tenho os lábios mais espessos, a face mais estreita, o olhar mais saliente, a testa aparentemente mais ovóide e larga. Olho e torno a olhar. Há algo a mais e tudo a menos. Já não existe, porém, qualquer espanto, nem consternação, nem história. A minha vida acabara, o funeral realizava-se ainda em Campo de Ourique, quando, de modo imperscrutável e enigmático, surgi sentado, ao mesmíssimo tempo, num banco do Jardim da Estrela. Como pude eu ter estado simultaneamente em dois lugares, num já morto, noutro ainda e sempre vivo? Não sei. Restou-me fugir com medo que alguém me reconhecesse como ressuscitado, bruxo esventrado ou fantasma maldito. Eu, cantor famoso e apresentador de programas de Tv! Agora, nesta antecâmara da metamorfose do corpo, olho e volto a olhar-me ao espelho e revejo o que já não sou e sobretudo o que voltei a ser. Decido, mais uma vez, esquecer todo o passado e enveredo por nova vida. Desvendar sinais e persistir. Haja o que houver.
Até que, por trás, de bata azulada, surgiu uma das enfermeiras desta que é a clínica de cirurgia plástica mais afamada de toda a Península Ibérica. Olho insistentemente o espelho e encaro-a. Tem cabelos louros e é alta, bonita. Sorri. Que estou muito bem, bonito, pareço outro, - Ainda hei-de ir passear consigo para lhe mostrar o cais de Barceloneta. Daqui a duas horas já não vai sentir nada, vai ver. Durante a anestesia, sabe, dizia coisas estranhas. Nós, catalães, entendemos o Português muito bem. Sonhou de um modo tão profundo que falava como se fosse um poeta. Dizia que já ia na segunda vida e que nunca mais podia voltar atrás. Que não ia ter saudades de mais nada e que voltava a partir. Chegou a tratar-me pelo meu próprio nome, o que levou os médicos e as outras enfermeiras a pensarem que já nos conhecíamos. Intuições muito particulares! Que mal tem, não é assim? Não se importe, pois eu sou uma mulher descontraída. Está só, eu entendo; vê-se logo que deve querer a companhia habitual dos que aqui acorrem. Olhe, a esta clínica vem cá ter de tudo. Actores americanos, gente do jet set internacional, cantores arménios, polacos e italianos, políticos na reforma e mais não digo para não comprometer terceiros. Mas com a sua determinação e sossego vi pouca gente, garanto-lhe. E o senhor tem um óptimo coração, mesmo fora do normal; resistiu a tudo sem problemas e esta sua recuperação é coisa nunca vista. Não, não, não me responda; agradeço-lhe que não fale por agora. Mais tarde, logo ao fim da tarde, já poderá dizer o que quiser e comer, viajar, tudo. Tudo.
Rodei a cadeira e voltei a ver o meu rosto no espelho pela segunda vez. A enfermeira apareceu então sentada à minha frente e, com as pernas à volta da cadeira móvel, retirou-me com vagar algumas das ligaduras mais pequenas que me protegiam o pescoço, as orelhas, os extremos da testa. Sorria sempre e ia acrescentando: Isto é como o Caim e o Abel. O primeiro matou o segundo por pura inveja. Se Deus tivesse dado mais atenção ao Caim, se calhar, era o Abel o primeiro dos assassinos. Aqui nesta casa, entram muitos Abéis e saem ainda mais Caíns; doutras vezes, entram Caíns e saem alguns Abéis. Tudo depende da reacção ao pós-operatório. Se não se chegam a habituar ao novo visual, nunca matam como deve ser o Abel que já foram; se gostam dele, tornam-se Caíns para sempre. Qual é o seu caso? Diga sem falar. E Adão levantou dois dedos no ar, optando pelo segundo dos casos e, portanto, mostrando a si próprio que se tornaria Caim para sempre. Foi nesse momento, pensou, que redescobriu o seu novo nome. Deixaria de ser José Adão Ulisses Ferreira para passar a ser apenas Caim Ulisses. Amanhã, quando procurar quem lhe forje papéis já Adão sabe o que declarar. A verdade é que uma nova coisa, nesta vida, precisa também de um novo nome.
A enfermeira está de pé, apoiada à ombreira da porta, e ainda não saiu da sala. Volto a vê-la pelo espelho e ela sorri. Chama-se Sara e parece a Sharon Stone nas maçãs do rosto, nos braços, na silhueta geral. Não me poupa olhares e eu pergunto-me se ela será assim com todos os pacientes. Talvez sim. Dois dias mais tarde, encostei-me aos varões metálicos da varanda e olhei-a a nadar sozinha na imensa piscina. Um fio de seda vermelho deixava suspensas pequenas bandeiras azuis de forma triangular. Um calor espesso, quente e húmido. O corpo de Sara flutuando, fundeando, de braços abertos ou unidos em anel translúcido, puro, antigo. Sobre o azul desvanecido onde luzem membros, espáduas e dedos em movimento. Vejo-a de cima e, por trás das vidraças, surge o casario da cidade, plátanos fascinados pela penumbra, aves discretas nos braços de metal oitocentista. Sara chega ao fundo da piscina, agarra-se depois às bóias e faz-me adeus quase em câmara lenta. Respondo-lhe e abro também os braços. Que não posso ainda entrar na água, quereria eu dizer. Ela ri-se, sorri, inclina o rosto para a água. Talvez a querer dizer que sim e que não, que importaria isso agora! Que maravilha… como o tempo se dilui, às vezes, em pasmo perfeito.
Um dia depois, encontrámo-nos no Hotel Oriente e, quando ultrapassámos o gato em corrida pelo corredor, entrámos no quarto. Bebemos cola e sumo de pêssego, fechámos os cortinados e dissemos um ao outro que era agora. E parecia até ter sido a primeira vez para ela, dada a cor do sangue que atestava a dádiva da sua própria iniciação, ali. Doava-mo a mim, generosamente, seu parceiro apenas de dois ou três dias. E porquê? Inquiria eu. Sara respondia que não sabia, mas abraçava-me, sufocava-me com braços gigantes, quais hastes apagando-se na réstia de luz que a janela entreaberta nos concedia. Era apenas o período, dizia; era apenas o signo do Zodíaco mensal e dos amores mais perfeitos, acrescentava. Um milagre, respondi eu, cheio de felicidade incompreensível, misteriosa. Disse-lhe que do passado não contaria nada e pedi-lhe que fizesse o mesmo. Ela não respondeu, mas passou com a palma da mão muito aberta no meu rosto, expiando a abnegação amorosa, espiando o reencontro sem explicação e a inaudita voragem.
Disse-me que, quando me viu na clínica, desvendou no meu olhar qualquer coisa que nunca antes havia visto. Era como se eu brotasse de longe para a plena sedução da vida; era como se eu nascesse para a tentação irremediável de viver; era como se eu avisasse quem me olhasse da imensa e indefinida alegria a partilhar; era como se não acordasse apenas de uma cirurgia, mas sim de um paraíso ilibado de qualquer espécie de angústia ou de mal. Sara apontou para mim e concluiu - Não resisti a seguir-te no dia seguinte. Por isso, decidi aparecer no teu hotel e logo saímos ao café do Liceu, rodeados de travestis, actores, escritores e chulos encartados. Por isso me ri durante essa noite e me senti aparentemente transtornada. Por isso te convidei a aparecer na piscina na tarde de Sexta. Por isso aqui estava, agora mesmo, neste Domingo de primórdios e prelúdios inenarráveis. Ouvi-a até ao fim e, ao mesmo tempo, sem querer, revi-me no espelho do armário; tinha, de facto, os lábios mais espessos, a face mais estreita, o olhar mais saliente, a testa aparentemente mais ovóide e larga. Este era eu, o Caim que apenas Sara conhecera e talvez tivesse amado, quem sabe? Até agora mais ninguém podia ter existido para mim, decidi.
Só nessa noite o mordomo de ares orientais deu a Caim os papéis que foram pagos a peso de ouro. Neles, Caim aparecia já com a nova face, inscrita quer em passaporte português, quer em espanhol, para além das cartas de condução, do cartão de contribuinte e mais uns dois ou três secundários. José Adão morrera finalmente nas letras do seu nome. Agora urgia voltar a Lisboa para procurar dinheiro num cofre que tinha mantido escondido, sob o soalho, na casa azul da Rua Marquês de Tomar. A maleta que trouxera carregada com notas de dólares e de marcos estava a acabar-se; a operação fora, de facto, uma fortuna. E depois, depois, que fazer à vida? Perguntava-se o nosso homem, a sós, sentado numa das esplanadas da Praça da Catalunha, enquanto esperava, já mais calmo, pela sua novíssima e endiabrada Sharon Stone.
Apenas uma semana após a operação, Caim convidou Sara a visitar Lisboa. Disse que conhecia mal a cidade. Mas queria mostrar-lha. A enfermeira respondeu-lhe que, com ele, iria até ao fim do mundo se fosse preciso; uma paixão assim nunca havia ela conhecido, dizia. Caim empalidecia com tanta apressada sorte, mas não conseguia conter, de quando em quando, gestos e palavras rudes que nunca antes conhecera em si. Será que com o nome, também mudam as coisas? Perguntava-se em sigilo total. Sara vestiu-se como uma verdadeira Stone e sentou-se ao lado de Caim no avião da Portugália. Um ar de suspense e estranho fulgor percorria este ambiente sepulcral de bancos azulados, hospedeiras e bagagens de mão arrumadas à pressa. Pela primeira vez, Caim olhava para os passageiros e comissários de bordo portugueses sem medo que o reconhecessem como o velho Adão que já fora. Os motores começam agora a trabalhar e a máquina faz-se à pista, acelera e roça depois o primeiro ar entre poços de ar e o rubor agitado das nuvens. Com a mesma ternura dos inícios do casamento com Luísa, Caim colocou, por momentos, a mão sobre a mão de Sara e sentiu em vão uma vontade indomável de cantar opereta ou zarzuela.
A viagem foi serena, calma, deslizando sobre nuvens compridas de formato barroco, maciças como patas de cisne, leques de crisálida, casulos de algodão. A foz do Tejo, encurtando as reentradas do Seixal, surgiu pouco depois e a aterragem, sôfrega e algo ventosa, foi de voo rasante à arquitectura informe da nova Lisboa. Sara nunca havia estado na cidade de Cesário e Pessoa e, por isso mesmo, mostrava-se deslumbrada, ávida por percorrer uma nova experiência. Por seu lado, Caim não foi capaz de disfarçar um halo afectado e aturdido, quando deu de caras com um imenso cartaz que ostentava ainda o rosto de Adão. Pouco depois, o táxi conduziu o jovem casal ao Hotel Internacional, aconselhado pelo mordomo de traços orientais da capital catalã. Parecia o intróito a uma nova vida, cheia de surpresas, horizontes e fôlegos. Ou não quisesse Sara dizer deserto em Árabe.
Até que, por trás, de bata azulada, surgiu uma das enfermeiras desta que é a clínica de cirurgia plástica mais afamada de toda a Península Ibérica. Olho insistentemente o espelho e encaro-a. Tem cabelos louros e é alta, bonita. Sorri. Que estou muito bem, bonito, pareço outro, - Ainda hei-de ir passear consigo para lhe mostrar o cais de Barceloneta. Daqui a duas horas já não vai sentir nada, vai ver. Durante a anestesia, sabe, dizia coisas estranhas. Nós, catalães, entendemos o Português muito bem. Sonhou de um modo tão profundo que falava como se fosse um poeta. Dizia que já ia na segunda vida e que nunca mais podia voltar atrás. Que não ia ter saudades de mais nada e que voltava a partir. Chegou a tratar-me pelo meu próprio nome, o que levou os médicos e as outras enfermeiras a pensarem que já nos conhecíamos. Intuições muito particulares! Que mal tem, não é assim? Não se importe, pois eu sou uma mulher descontraída. Está só, eu entendo; vê-se logo que deve querer a companhia habitual dos que aqui acorrem. Olhe, a esta clínica vem cá ter de tudo. Actores americanos, gente do jet set internacional, cantores arménios, polacos e italianos, políticos na reforma e mais não digo para não comprometer terceiros. Mas com a sua determinação e sossego vi pouca gente, garanto-lhe. E o senhor tem um óptimo coração, mesmo fora do normal; resistiu a tudo sem problemas e esta sua recuperação é coisa nunca vista. Não, não, não me responda; agradeço-lhe que não fale por agora. Mais tarde, logo ao fim da tarde, já poderá dizer o que quiser e comer, viajar, tudo. Tudo.
Rodei a cadeira e voltei a ver o meu rosto no espelho pela segunda vez. A enfermeira apareceu então sentada à minha frente e, com as pernas à volta da cadeira móvel, retirou-me com vagar algumas das ligaduras mais pequenas que me protegiam o pescoço, as orelhas, os extremos da testa. Sorria sempre e ia acrescentando: Isto é como o Caim e o Abel. O primeiro matou o segundo por pura inveja. Se Deus tivesse dado mais atenção ao Caim, se calhar, era o Abel o primeiro dos assassinos. Aqui nesta casa, entram muitos Abéis e saem ainda mais Caíns; doutras vezes, entram Caíns e saem alguns Abéis. Tudo depende da reacção ao pós-operatório. Se não se chegam a habituar ao novo visual, nunca matam como deve ser o Abel que já foram; se gostam dele, tornam-se Caíns para sempre. Qual é o seu caso? Diga sem falar. E Adão levantou dois dedos no ar, optando pelo segundo dos casos e, portanto, mostrando a si próprio que se tornaria Caim para sempre. Foi nesse momento, pensou, que redescobriu o seu novo nome. Deixaria de ser José Adão Ulisses Ferreira para passar a ser apenas Caim Ulisses. Amanhã, quando procurar quem lhe forje papéis já Adão sabe o que declarar. A verdade é que uma nova coisa, nesta vida, precisa também de um novo nome.
A enfermeira está de pé, apoiada à ombreira da porta, e ainda não saiu da sala. Volto a vê-la pelo espelho e ela sorri. Chama-se Sara e parece a Sharon Stone nas maçãs do rosto, nos braços, na silhueta geral. Não me poupa olhares e eu pergunto-me se ela será assim com todos os pacientes. Talvez sim. Dois dias mais tarde, encostei-me aos varões metálicos da varanda e olhei-a a nadar sozinha na imensa piscina. Um fio de seda vermelho deixava suspensas pequenas bandeiras azuis de forma triangular. Um calor espesso, quente e húmido. O corpo de Sara flutuando, fundeando, de braços abertos ou unidos em anel translúcido, puro, antigo. Sobre o azul desvanecido onde luzem membros, espáduas e dedos em movimento. Vejo-a de cima e, por trás das vidraças, surge o casario da cidade, plátanos fascinados pela penumbra, aves discretas nos braços de metal oitocentista. Sara chega ao fundo da piscina, agarra-se depois às bóias e faz-me adeus quase em câmara lenta. Respondo-lhe e abro também os braços. Que não posso ainda entrar na água, quereria eu dizer. Ela ri-se, sorri, inclina o rosto para a água. Talvez a querer dizer que sim e que não, que importaria isso agora! Que maravilha… como o tempo se dilui, às vezes, em pasmo perfeito.
Um dia depois, encontrámo-nos no Hotel Oriente e, quando ultrapassámos o gato em corrida pelo corredor, entrámos no quarto. Bebemos cola e sumo de pêssego, fechámos os cortinados e dissemos um ao outro que era agora. E parecia até ter sido a primeira vez para ela, dada a cor do sangue que atestava a dádiva da sua própria iniciação, ali. Doava-mo a mim, generosamente, seu parceiro apenas de dois ou três dias. E porquê? Inquiria eu. Sara respondia que não sabia, mas abraçava-me, sufocava-me com braços gigantes, quais hastes apagando-se na réstia de luz que a janela entreaberta nos concedia. Era apenas o período, dizia; era apenas o signo do Zodíaco mensal e dos amores mais perfeitos, acrescentava. Um milagre, respondi eu, cheio de felicidade incompreensível, misteriosa. Disse-lhe que do passado não contaria nada e pedi-lhe que fizesse o mesmo. Ela não respondeu, mas passou com a palma da mão muito aberta no meu rosto, expiando a abnegação amorosa, espiando o reencontro sem explicação e a inaudita voragem.
Disse-me que, quando me viu na clínica, desvendou no meu olhar qualquer coisa que nunca antes havia visto. Era como se eu brotasse de longe para a plena sedução da vida; era como se eu nascesse para a tentação irremediável de viver; era como se eu avisasse quem me olhasse da imensa e indefinida alegria a partilhar; era como se não acordasse apenas de uma cirurgia, mas sim de um paraíso ilibado de qualquer espécie de angústia ou de mal. Sara apontou para mim e concluiu - Não resisti a seguir-te no dia seguinte. Por isso, decidi aparecer no teu hotel e logo saímos ao café do Liceu, rodeados de travestis, actores, escritores e chulos encartados. Por isso me ri durante essa noite e me senti aparentemente transtornada. Por isso te convidei a aparecer na piscina na tarde de Sexta. Por isso aqui estava, agora mesmo, neste Domingo de primórdios e prelúdios inenarráveis. Ouvi-a até ao fim e, ao mesmo tempo, sem querer, revi-me no espelho do armário; tinha, de facto, os lábios mais espessos, a face mais estreita, o olhar mais saliente, a testa aparentemente mais ovóide e larga. Este era eu, o Caim que apenas Sara conhecera e talvez tivesse amado, quem sabe? Até agora mais ninguém podia ter existido para mim, decidi.
Só nessa noite o mordomo de ares orientais deu a Caim os papéis que foram pagos a peso de ouro. Neles, Caim aparecia já com a nova face, inscrita quer em passaporte português, quer em espanhol, para além das cartas de condução, do cartão de contribuinte e mais uns dois ou três secundários. José Adão morrera finalmente nas letras do seu nome. Agora urgia voltar a Lisboa para procurar dinheiro num cofre que tinha mantido escondido, sob o soalho, na casa azul da Rua Marquês de Tomar. A maleta que trouxera carregada com notas de dólares e de marcos estava a acabar-se; a operação fora, de facto, uma fortuna. E depois, depois, que fazer à vida? Perguntava-se o nosso homem, a sós, sentado numa das esplanadas da Praça da Catalunha, enquanto esperava, já mais calmo, pela sua novíssima e endiabrada Sharon Stone.
Apenas uma semana após a operação, Caim convidou Sara a visitar Lisboa. Disse que conhecia mal a cidade. Mas queria mostrar-lha. A enfermeira respondeu-lhe que, com ele, iria até ao fim do mundo se fosse preciso; uma paixão assim nunca havia ela conhecido, dizia. Caim empalidecia com tanta apressada sorte, mas não conseguia conter, de quando em quando, gestos e palavras rudes que nunca antes conhecera em si. Será que com o nome, também mudam as coisas? Perguntava-se em sigilo total. Sara vestiu-se como uma verdadeira Stone e sentou-se ao lado de Caim no avião da Portugália. Um ar de suspense e estranho fulgor percorria este ambiente sepulcral de bancos azulados, hospedeiras e bagagens de mão arrumadas à pressa. Pela primeira vez, Caim olhava para os passageiros e comissários de bordo portugueses sem medo que o reconhecessem como o velho Adão que já fora. Os motores começam agora a trabalhar e a máquina faz-se à pista, acelera e roça depois o primeiro ar entre poços de ar e o rubor agitado das nuvens. Com a mesma ternura dos inícios do casamento com Luísa, Caim colocou, por momentos, a mão sobre a mão de Sara e sentiu em vão uma vontade indomável de cantar opereta ou zarzuela.
A viagem foi serena, calma, deslizando sobre nuvens compridas de formato barroco, maciças como patas de cisne, leques de crisálida, casulos de algodão. A foz do Tejo, encurtando as reentradas do Seixal, surgiu pouco depois e a aterragem, sôfrega e algo ventosa, foi de voo rasante à arquitectura informe da nova Lisboa. Sara nunca havia estado na cidade de Cesário e Pessoa e, por isso mesmo, mostrava-se deslumbrada, ávida por percorrer uma nova experiência. Por seu lado, Caim não foi capaz de disfarçar um halo afectado e aturdido, quando deu de caras com um imenso cartaz que ostentava ainda o rosto de Adão. Pouco depois, o táxi conduziu o jovem casal ao Hotel Internacional, aconselhado pelo mordomo de traços orientais da capital catalã. Parecia o intróito a uma nova vida, cheia de surpresas, horizontes e fôlegos. Ou não quisesse Sara dizer deserto em Árabe.