O Trevo de Abel – Episódio 15
Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Segunda Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Depois de abrir a porta e suspirar aliviado, Adão dirigiu-se ao quarto. A gaveta, o dinheiro, a pressa, o tempo, o próprio suor acompanhou a descompassada azáfama e quase precipitação do ressuscitado. Afinal não é apenas Cristo, como lhe haviam dito na santa catequese e ouvira falar, solene, à amante do avô - a cabeleireira gordinha, dotada de farto bigode e pernas alquebradas, rugosas. Ao abrir a porta do quarto, Adão colocou o pé sobre o tapete e, de repente, sentiu que deslizava sobre os frios e lisos mosaicos que cobrem o chão desta casa deserta da Bica. Qual tapete rolante, voador, em brasa, andarilho, próprio de casa de amante que já fugiu. De braços no ar, a tentar suster o equilíbrio, a vertigem ou o abismo que sempre visita estes breves instantes, a verdade é que Adão acabou por estatelar-se, caindo com o corpo todo em cima de um dos antebraços. Por elementar fortuna, nada partiu ou quebrou. Segundo milagre, de facto, neste dia de apuros e recatos de uma alma incendiada.
Depois do que hoje já vivera, levado pelo espanto mais imprevisto, limitava-se agora a rever-se neste tumultuoso inchaço entre punho e cotovelo que, por sinal, mais parecia uma espécie de monte-de-vénus adornado por leve penugem. Que mais iria acontecer a Adão? De momento, aproveitando a posição horizontal, condoído, o nosso homem limitou-se a abrir a última gaveta do móvel que lhe apareceu, por sortilégio da queda, diante dos próprios olhos. Abriu-a finalmente e dela retirou o cofre que abriu com a chave. De dentro, surgiu a maleta desejada, recheada de notas de cem dólares e de marcos e mais marcos. Após o choque da queda que sucedera ao estado de alarme, Adão pôs-se de imediato a correr, desvairado, lunático, desesperado mesmo... e meteu-se num táxi em direcção a Badajoz, Espanha, fosse para onde fosse; era o início da longa e possível fuga para o mundo. Ou, pelo menos, para o outro mundo que não o da sua própria morte estranhamente já vivida.
Em plena auto-estrada, por alturas de Vendas Novas - assim escrevera um dos seus tios na animada geografia lusa do antigo manual da 4ª classe - Adão voltou a lembrar-se de tudo o que lhe havia acontecido nessa manhã. Lembrava que o funeral estaria a correr e, como é natural, doutra coisa não se falava: era a rádio, a Tv, as pessoas cabisbaixas, os títulos de toda a imprensa e dos portais da internet; as bandeiras a meia haste, o presidente interrompendo o pós-operatório para anunciar condolências, o sol esmaecido, o céu acinzentado; a cidade de Lisboa deserdada de si, infortunada, inconsolada sobretudo. E eu, revelava-se Adão, silencioso mas bizarramente deleitoso, ali sentado num dos bancos da entrada do Jardim da Estrela... no que foi e será, para sempre, o maior estremecimento e calafrio de toda a minha vida. O que perguntei a mim próprio, naquele preciso instante, foi apenas isto: como poderia eu ir naquele caixão, num funeral nacional, a caminho dos Prazeres e, ao mesmo tempo, estar também ali, sentado, paralelo à morte e em estado de plena vida? Como é que eu podia ter passado de morto convicto e com óbito já passado a um ser vivo que, subitamente e sem explicação alguma, celeste ou profana, aparecia sentado num banco de jardim e ainda por cima do jardim dito da Estrela?
Se alguém, nesse instante mágico, tivesse olhado para aquele banco de jardim tinha dado conta de uma verdadeira aparição, tal como Méliès, no início do cinema, experimentara. Poder-me-iam ter santificado; a mim e aos que me tivessem olhado, claro. E teria tido direito a estátua de bronze, porventura equestre, com aura circular e auréola na quadratura; e teria tido direito a peregrinações, relíquias, espinhos, incensos, rimas, velas, lendas, rezas e tudo o mais que é próprio de um alumbrado sem explicação. Pois é precisamente da metamorfose impossível, raiz de todo o inexplicável, que é feito o mistério. E eu, este morto subitamente vivo, tornar-me-ia, por força dos feitiços e encantamentos da vida, num verdadeiro fruto do mistério e do insondável, enfim, da mestria pura. Mas como ninguém reparou nessa minha indecifrável aparição, que não eu, mais não pensei, na altura, senão em fugir. Palavra!
Um verdadeiro pânico bateu-me à porta do corpo, do espírito, da alma profunda e incendiada que se arvorava e crescia em mim com uma dor insuportável, imensa. Que é uma dor de alma, afinal? Não sei. Apenas me lembro que nesse breve momento de ressurreição, chamemos-lhe assim sem qualquer medo - e de novo me aparece a cara da cabeleireira agitando os túmidos e lânguidos seios entre a baça escuridão do barroco da Sé -, nesse momento de ressurreição, dizia, quando subitamente abri os olhos, vi tudo à minha volta filtrado por uma cor avermelhada. Naquela tarde do meu próprio funeral - repito - o céu surgiu a meus olhos, por cima do banco do Jardim da Estrela onde me sentava, todo avermelhado e lilás escurecido. De um lado ao outro do horizonte, sobre as águas do rio, nas praças, cais, avenidas e miradouros; coando o ar sobre telhados, reflectindo-se na calçada ou caldeando as finas poeiras do Verão, uma imensa aurora boreal parecia despontar outra vez. Pelo menos, era assim que eu voltava a ver estranhamente a vida. Naquela tarde ímpar, uma inexplicável vermelhidão cobria, de facto, a cidade de Lisboa que a minha vista pôde vislumbrar. A admiração mais profunda invadiu-me, tomou conta de mim, devo confessar. Cheguei a pensar que aquilo era vestígio do antigo sangue vertido pela inquisição alfacinha, ou simples reflexo das nuvens migratórias de insectos do Atlas canicular e abrasador.
Quando me consegui levantar do banco do jardim, eu próprio era o pasmo que, em sigilo e mergulhado num mar de tormentas, gemia calado sob o atónito olhar dos lisboetas que, sem me reconhecerem, comigo se cruzavam. Na própria sombra, ao andar, sentia o perfil do assombramento e do medo mais óbvio. Comprei, de imediato, uns óculos escuros e espelhados numa banca de senegaleses, perto do coreto da Estrela e, com o olhar vertido sobre o brilho agoirento do basalto, decidi ir a casa da minha desafortunada e desaparecida Arlete para repescar o dinheiro que aí, há muito, guardara no cofre. Após esse rápido lance e a aparatosa queda que o acompanhou, fugir tornou-se no verbo que, de vez, me inundou a chama e a desalentada estupefacção em que me encontrava. Sem mais, ali ia eu, agora, de táxi, cruzando o arvoredo do Alentejo, de Oeste a Leste, já cheio de saudades dos rosmaninhos de Lisboa, do alto do Adamastor e sobretudo da vida que havia vivido sob o nome de Adão. Quem era eu neste momento?
No assento do carro, tentava refugiar-me dos olhares do taxista pelo retrovisor. Por outro lado, os óculos cobriam-me quase meia face e neles apenas se evidenciava, a toda a largura, um espesso espelho onde se reflectia tudo o que o curioso do chauffer teria diante dos olhos: bermas, candeeiros, áreas de serviço, indicações de trânsito e nuvens rasteiras deitadas num céu azul instável e sempre imprevisível. Para disfarçar, ia a sorrir, a sacudir o rosto, a premir os lábios para os lados, bocejando o mais que podia. Foi deste modo, entre trejeitos e acrobacias não muito estudadas, que vi cruzar os sobreirais da Serra d´Ossa, os mármores de Estremoz, as Linhas de Elvas e, por fim, os verdes campos do Caia. Só na Praça dos Conquistadores, já em Badajoz, depois de ter cortado o fio umbilical português, é que sosseguei. No entanto, por quase apenas me limitar a ouvir a língua de Camões nas ruas da cidade, logo decidi correr em direcção à estação e aí comprei, de imediato, um bilhete para o primeiro comboio com destino a Madrid. E foi assim que atravessei a noite toda em viagem como se, através da desconhecida história da minha vida, eu me aventurasse agora nas malhas de um destino decerto muito pouco predestinado.
No mesmo compartimento viajou comigo desde Trujillo um homem gordo, baixo e de pêra serena. Dir-se-ia um Sancho Pança acamado em silêncio de pedra, mas predisposto a ser invadido por palavras pias e solenes. Perguntei-lhe pela vida como se, com isso, quisesse entender o novo mundo em que me movia. O Alonso era fogueteiro e pirotécnico ao mesmo tempo e morava em viagem, de feira em feira, de pueblo em pueblo. Sorria e com a sua voz empastelada e rouca dos Ducados contou-me tudo acerca da arte de disparar um belo foguete nas romarias e festejos da estepe ibérica. Disse-me que se transfigurava sempre que rogava aos céus o dom do fogo de artifício, pois era essa a sua missão última na vida, sabia-o desde as calendas mais remotas. Quando lhe perguntei o que queria dizer com a palavra transfiguração, disse-me que, no êxtase do seu trabalho, algo nele se alumiava, qual vela ou archote secreto sem os quais não conseguia viver ou sonhar. Por isso era nómada, errante, ambulante visionário e amante de Teresa de Ávila e do Amancio de outros tempos, destemido, mas calmo, seguro de si. Não tinha casa, nem pouso e conhecia mal muita gente, bem quase ninguém. Quando me acenou em Atocha, na hora da despedida, percebi que havia nele algo de mim. Limitara-me sabiamente a ouvi-lo ao longo de mais de duas horas, mas agora sabia o que fazer. Sabia perfeitamente o que fazer.
Era como se o fogo de artifício se tivesse acendido dentro de mim e não nos céus do Alonso. Percebi que eu próprio era um ser em chamas, um ser incomum, talvez, e demasiado inquieto. Ao longo da Gran Via, decidi esquecer a minha antiga vida o mais possível. Assim fiz, de bocadillo na mão e com a outra já presa à correia de apoio do metro que me levava para Chamartin. No fundo, sabia, há muito tempo, que as melhores clínicas de cirurgia plástica se escondiam algures no sul da Diagonal de Barcelona. Para lá continuei a minha longa viagem, tentando sentir-me no momento primeiro e inicial de uma nova e futura vida. Tinha o dinheiro suficiente e o saber mínimo para tal.
Tinha que me esconder. Tinha que me refugiar da incompreensão do mundo, é certo. Tinha que seguir em frente até aos limites que o destino me concedesse.
Foi, animado deste espírito, que vi um touro imenso da Domeque a empoleirar-se numa montanha com os cornos e os testículos vermelhos.
Foi, animado deste espírito, que vi Saragoça a dançar num horizonte meio glacial, meio púrpura, perdida no meio das terras proféticas aragonesas.
Depois do que hoje já vivera, levado pelo espanto mais imprevisto, limitava-se agora a rever-se neste tumultuoso inchaço entre punho e cotovelo que, por sinal, mais parecia uma espécie de monte-de-vénus adornado por leve penugem. Que mais iria acontecer a Adão? De momento, aproveitando a posição horizontal, condoído, o nosso homem limitou-se a abrir a última gaveta do móvel que lhe apareceu, por sortilégio da queda, diante dos próprios olhos. Abriu-a finalmente e dela retirou o cofre que abriu com a chave. De dentro, surgiu a maleta desejada, recheada de notas de cem dólares e de marcos e mais marcos. Após o choque da queda que sucedera ao estado de alarme, Adão pôs-se de imediato a correr, desvairado, lunático, desesperado mesmo... e meteu-se num táxi em direcção a Badajoz, Espanha, fosse para onde fosse; era o início da longa e possível fuga para o mundo. Ou, pelo menos, para o outro mundo que não o da sua própria morte estranhamente já vivida.
Em plena auto-estrada, por alturas de Vendas Novas - assim escrevera um dos seus tios na animada geografia lusa do antigo manual da 4ª classe - Adão voltou a lembrar-se de tudo o que lhe havia acontecido nessa manhã. Lembrava que o funeral estaria a correr e, como é natural, doutra coisa não se falava: era a rádio, a Tv, as pessoas cabisbaixas, os títulos de toda a imprensa e dos portais da internet; as bandeiras a meia haste, o presidente interrompendo o pós-operatório para anunciar condolências, o sol esmaecido, o céu acinzentado; a cidade de Lisboa deserdada de si, infortunada, inconsolada sobretudo. E eu, revelava-se Adão, silencioso mas bizarramente deleitoso, ali sentado num dos bancos da entrada do Jardim da Estrela... no que foi e será, para sempre, o maior estremecimento e calafrio de toda a minha vida. O que perguntei a mim próprio, naquele preciso instante, foi apenas isto: como poderia eu ir naquele caixão, num funeral nacional, a caminho dos Prazeres e, ao mesmo tempo, estar também ali, sentado, paralelo à morte e em estado de plena vida? Como é que eu podia ter passado de morto convicto e com óbito já passado a um ser vivo que, subitamente e sem explicação alguma, celeste ou profana, aparecia sentado num banco de jardim e ainda por cima do jardim dito da Estrela?
Se alguém, nesse instante mágico, tivesse olhado para aquele banco de jardim tinha dado conta de uma verdadeira aparição, tal como Méliès, no início do cinema, experimentara. Poder-me-iam ter santificado; a mim e aos que me tivessem olhado, claro. E teria tido direito a estátua de bronze, porventura equestre, com aura circular e auréola na quadratura; e teria tido direito a peregrinações, relíquias, espinhos, incensos, rimas, velas, lendas, rezas e tudo o mais que é próprio de um alumbrado sem explicação. Pois é precisamente da metamorfose impossível, raiz de todo o inexplicável, que é feito o mistério. E eu, este morto subitamente vivo, tornar-me-ia, por força dos feitiços e encantamentos da vida, num verdadeiro fruto do mistério e do insondável, enfim, da mestria pura. Mas como ninguém reparou nessa minha indecifrável aparição, que não eu, mais não pensei, na altura, senão em fugir. Palavra!
Um verdadeiro pânico bateu-me à porta do corpo, do espírito, da alma profunda e incendiada que se arvorava e crescia em mim com uma dor insuportável, imensa. Que é uma dor de alma, afinal? Não sei. Apenas me lembro que nesse breve momento de ressurreição, chamemos-lhe assim sem qualquer medo - e de novo me aparece a cara da cabeleireira agitando os túmidos e lânguidos seios entre a baça escuridão do barroco da Sé -, nesse momento de ressurreição, dizia, quando subitamente abri os olhos, vi tudo à minha volta filtrado por uma cor avermelhada. Naquela tarde do meu próprio funeral - repito - o céu surgiu a meus olhos, por cima do banco do Jardim da Estrela onde me sentava, todo avermelhado e lilás escurecido. De um lado ao outro do horizonte, sobre as águas do rio, nas praças, cais, avenidas e miradouros; coando o ar sobre telhados, reflectindo-se na calçada ou caldeando as finas poeiras do Verão, uma imensa aurora boreal parecia despontar outra vez. Pelo menos, era assim que eu voltava a ver estranhamente a vida. Naquela tarde ímpar, uma inexplicável vermelhidão cobria, de facto, a cidade de Lisboa que a minha vista pôde vislumbrar. A admiração mais profunda invadiu-me, tomou conta de mim, devo confessar. Cheguei a pensar que aquilo era vestígio do antigo sangue vertido pela inquisição alfacinha, ou simples reflexo das nuvens migratórias de insectos do Atlas canicular e abrasador.
Quando me consegui levantar do banco do jardim, eu próprio era o pasmo que, em sigilo e mergulhado num mar de tormentas, gemia calado sob o atónito olhar dos lisboetas que, sem me reconhecerem, comigo se cruzavam. Na própria sombra, ao andar, sentia o perfil do assombramento e do medo mais óbvio. Comprei, de imediato, uns óculos escuros e espelhados numa banca de senegaleses, perto do coreto da Estrela e, com o olhar vertido sobre o brilho agoirento do basalto, decidi ir a casa da minha desafortunada e desaparecida Arlete para repescar o dinheiro que aí, há muito, guardara no cofre. Após esse rápido lance e a aparatosa queda que o acompanhou, fugir tornou-se no verbo que, de vez, me inundou a chama e a desalentada estupefacção em que me encontrava. Sem mais, ali ia eu, agora, de táxi, cruzando o arvoredo do Alentejo, de Oeste a Leste, já cheio de saudades dos rosmaninhos de Lisboa, do alto do Adamastor e sobretudo da vida que havia vivido sob o nome de Adão. Quem era eu neste momento?
No assento do carro, tentava refugiar-me dos olhares do taxista pelo retrovisor. Por outro lado, os óculos cobriam-me quase meia face e neles apenas se evidenciava, a toda a largura, um espesso espelho onde se reflectia tudo o que o curioso do chauffer teria diante dos olhos: bermas, candeeiros, áreas de serviço, indicações de trânsito e nuvens rasteiras deitadas num céu azul instável e sempre imprevisível. Para disfarçar, ia a sorrir, a sacudir o rosto, a premir os lábios para os lados, bocejando o mais que podia. Foi deste modo, entre trejeitos e acrobacias não muito estudadas, que vi cruzar os sobreirais da Serra d´Ossa, os mármores de Estremoz, as Linhas de Elvas e, por fim, os verdes campos do Caia. Só na Praça dos Conquistadores, já em Badajoz, depois de ter cortado o fio umbilical português, é que sosseguei. No entanto, por quase apenas me limitar a ouvir a língua de Camões nas ruas da cidade, logo decidi correr em direcção à estação e aí comprei, de imediato, um bilhete para o primeiro comboio com destino a Madrid. E foi assim que atravessei a noite toda em viagem como se, através da desconhecida história da minha vida, eu me aventurasse agora nas malhas de um destino decerto muito pouco predestinado.
No mesmo compartimento viajou comigo desde Trujillo um homem gordo, baixo e de pêra serena. Dir-se-ia um Sancho Pança acamado em silêncio de pedra, mas predisposto a ser invadido por palavras pias e solenes. Perguntei-lhe pela vida como se, com isso, quisesse entender o novo mundo em que me movia. O Alonso era fogueteiro e pirotécnico ao mesmo tempo e morava em viagem, de feira em feira, de pueblo em pueblo. Sorria e com a sua voz empastelada e rouca dos Ducados contou-me tudo acerca da arte de disparar um belo foguete nas romarias e festejos da estepe ibérica. Disse-me que se transfigurava sempre que rogava aos céus o dom do fogo de artifício, pois era essa a sua missão última na vida, sabia-o desde as calendas mais remotas. Quando lhe perguntei o que queria dizer com a palavra transfiguração, disse-me que, no êxtase do seu trabalho, algo nele se alumiava, qual vela ou archote secreto sem os quais não conseguia viver ou sonhar. Por isso era nómada, errante, ambulante visionário e amante de Teresa de Ávila e do Amancio de outros tempos, destemido, mas calmo, seguro de si. Não tinha casa, nem pouso e conhecia mal muita gente, bem quase ninguém. Quando me acenou em Atocha, na hora da despedida, percebi que havia nele algo de mim. Limitara-me sabiamente a ouvi-lo ao longo de mais de duas horas, mas agora sabia o que fazer. Sabia perfeitamente o que fazer.
Era como se o fogo de artifício se tivesse acendido dentro de mim e não nos céus do Alonso. Percebi que eu próprio era um ser em chamas, um ser incomum, talvez, e demasiado inquieto. Ao longo da Gran Via, decidi esquecer a minha antiga vida o mais possível. Assim fiz, de bocadillo na mão e com a outra já presa à correia de apoio do metro que me levava para Chamartin. No fundo, sabia, há muito tempo, que as melhores clínicas de cirurgia plástica se escondiam algures no sul da Diagonal de Barcelona. Para lá continuei a minha longa viagem, tentando sentir-me no momento primeiro e inicial de uma nova e futura vida. Tinha o dinheiro suficiente e o saber mínimo para tal.
Tinha que me esconder. Tinha que me refugiar da incompreensão do mundo, é certo. Tinha que seguir em frente até aos limites que o destino me concedesse.
Foi, animado deste espírito, que vi um touro imenso da Domeque a empoleirar-se numa montanha com os cornos e os testículos vermelhos.
Foi, animado deste espírito, que vi Saragoça a dançar num horizonte meio glacial, meio púrpura, perdida no meio das terras proféticas aragonesas.