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quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel - Episódio 12
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Uma hora depois, terá sido provavelmente a sede e o cansaço que conduziu a breve narração de Abel às portas do British Bar. É profundo e clássico este local do Cais do Sodré, escurecido que é por madeiras de mogno sobrevoadas pela ventoinha da imortalidade. A encarnar a figura de anfitrião, Abel, no íntimo sempre à espera do cerco policial, sempre a viver uma espécie de último momento da vida, agora que já se expôs sem limites ao mundo dos vivos, abriu a porta do bar com toda a ligeireza do universo e convidou os doze a instalarem-se o mais possível junto da entrada.

Numa destas mesas a dar para a montra, dizia, e sublinhava-o com ar provocatório, sentavam-se muitas vezes os embaixadores da Alemanha e da Inglaterra, em plena Segunda Grande Guerra Mundial. Entretinham-se a jogar bridge e xadrez, imagine-se. Pelo menos, isto eram as histórias que ouvi por aqui muitas vezes contar, coisas que se diziam, exclamava Abel com ar subitamente pasmado, lembrando-se ainda tão bem do que se passara de manhã, quando Leonor descobriu tudo e depois... deve ter corrido para o hospital à procura do médico e da polícia, e eu, pensava Abel, a meter-me no carro e a fugir sem direcção, até Alverca, até ao Campo Grande... sem nada, e agora, agora, a contar tudo, tudo, mesmo tudo a esta gente que parece confiar em mim como se nos conhecêssemos há um século. Porquê eu?

Aliás, continuou Abel, este bar e o antigo Nina eram, em Lisboa, o epicentro favorito da espionagem germanófila e aliada. Por aqui, devem ter-se vivido ambientes parecidos aos do Casablanca. Sorrisos.

Zorba, atento aos pasmos mais silenciosos, sorriu finalmente de soslaio e como que a interromper o alocutário, adiantou: Ó Abel, sabe que eu vi isso? Você ouviu contar, mas eu vi. Vi com os meus próprios olhos. Lembro-me como se fosse hoje de ver esses dois senhores, aí mesmo, junto à janela, nessa mesa, sob uma grande nuvem, uma imensa fumarada de charutos e, claro, rodeados por todo o tipo de espiões que então existiam, com e sem suspensórios, de óculos ou de chapéu, de bengala ou com botas pretas de cabedal, de gabardina escura ou até de papillon.

Mas Abel continuou, sem se perturbar, quase ignorando a desdita. A antiguidade.

Foi aqui que eu, pela primeira vez, após dois anos de sucesso do ‘Limões e Biliões’, senti no peito um ardor muito parecido com o que sentira antes de ter sido operado. Lembro-me que, por não querer sequer imaginar que podia estar outra vez mal de saúde, paguei várias rodadas de cerveja numa noite histórica. Aqueles senhores de camisa branca, se soubessem quem eu sou, se me pudessem ou conseguissem reconhecer, lembrar-se-iam de certeza.

Lá fora, na rua, para além das janelas do British, Lisboa entorna-se nos caminhos da noite. Passam corpos altivos, mortificados, rápidos; rostos a rodopiar a loucura, olhares rarefeitos e mudos, carros de patrulha, sirenes, rebates e repiques. São sons desencontrados que propagam a ameaça, o desconcerto. De qualquer modo, Lisboa sempre encarou os seus heróis mais antigos com nostalgia e também com alguma generosidade. E o que pensará, hoje à noite, Luísa de tudo isto?

Abel cala-se por momentos e devolve o sorriso de pasmo na direcção de Isabel que tem a face vermelha, picotada de sardas, como que a captar os mil mistérios e sortilégios que se adivinham na sua própria história.
Depois de rever mil interrogações na vidraça fosca do bar, prosseguiu Abel:

O British foi o bar que mais frequentei durante o auge dos ‘Limões e Biliões’. Era nestas cadeiras de napa vermelha que eu acabava por me esquecer de ir para casa, para o tormento, para o reencontro das angústias, dos medos, de todos os tremores. E o facto de ter aqui sentido mais um aviso (a mão no coração, como se a culpa morasse num gesto que tem esse nome) até nem terá sido o mais importante. E Abel boceja, pasma, aceita a cigarrilha, o favor, o lume, mas é, outra vez, invadido pela memória súbita, inaudita, cada vez mais omnipresente. Tentadora.

Era como se, depois da fuga desta manhã, depois de ter suado e temido o pior, Abel tivesse decidido, num dos bancos de jardim do Campo Grande, que já tanto fazia que o apanhassem, que o prendessem, ou que o deitassem na pedra de mármore de uma faculdade de medicina para que se estudasse o fenómeno, o sortilégio,

o tal mistério.

A verdade é que, um mês depois desse aviso, dizia o acossado, numa noite de lua nova, a Arlete teve que me levar a correr para o Hospital Particular. Foi um acaso eu estar com ela, porque, com o andar do tempo, ia-a perdendo de vista. Na minha vida, confesse-se, fui perdendo muita coisa de vista, como se uma fuga para a frente me afastasse, a todo o momento, do curso do meu próprio destino. Havia em mim esse frémito, essa tentação secreta, apesar da doença; apesar da ameaça que, no meu íntimo, eu já sentia de... não poder continuar a deliciar o país com o ‘Limões e Biliões’.

E o que é que detectaram nesse hospital? Não sei, mas os médicos ficaram perturbados e encheram-me de comprimidos e análises. Passei o tempo nas tumbas claustrofóbicas das ressonâncias magnéticas, tacs e outras detestáveis torturas modernas. Emagreci, perdi cabelo e fiquei, para sempre, com esta tendência para avermelhar os olhos quando menos se espera, qual bruxo, arcebispo ou carniceiro doutras eras. Fosse como fosse, na televisão tudo isto não passou despercebido. E o facto é que, dois meses depois, o programa voltava a reduzir-se ao seu formato original de concurso e, à noite, sozinho, meio saneado, meio exilado, na solidão do meu palácio, eu muitas vezes delirava, falava alto, padecia de diabólicas insónias; enfim, parecia dominado por uma tormenta. Mas qual?

Eu já não era o mesmo. Tinha deixado, de vez, para trás o meu clímax, o cume do meu sucesso. O que me esperaria agora?