O Trevo de Abel - Episódio 6
Primeira Parte: O tempo de Adão
Primeira Parte: O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Abel repetia-se às vezes. Sempre a repetir que deixara de ver a mulher e a filha. Que se tinha alheado do mundo e abandonava, sem mais, tudo o que até então lhe era habitual e rotineiro. Abel era agora outro. Cantava na Madeira, na Venezuela, em França e na África do Sul para os emigrantes; cantava e animava os serões de sociedades populares, de Vila Real de Santo António a Caminha, do Fundão a Aveiro. Por ordem comercial da agência que produzia os seus espectáculos, acabou por receber um nome para a música pimba, o Ezequiel, e um outro nome para o heterónimo fadista, o Cesário Leme. Com visuais e posturas diferentes, como então se dizia, Abel deixou de vez o nome familiar na gaveta - que não era ainda Abel - e transvertia-se, quando não se travestia, no rosto e no corpo de um destino, cada vez mais, desencontrado.
Abel tinha-se esquecido definitivamente de tudo, mudara sem quase dar por isso e, claro, passava agora o tempo em quartos de hotel de duas, três ou quatro estrelas, entre restaurantes, aviões, autocarros e táxis de província.
Pouco depois, passaram os quatro a pé pela Embaixada de França e desceram depois a sombria Rua do Marquês de Tomar, onde a colina volta a descer para Boqueirões, Poços, Remolares e antigas lembranças de maremotos. Dona Joana, a avó de Júlia, aparecera entretanto na esquina. Tal como os outros, ouvira a deslumbrante frase inicial da história de Abel e já não foi capaz de abandonar o grupo.
Seria isso possível?
A meio caminho da ladeira tomarense, ainda houve tempo para uma paragem, talvez o alento da grande descida:
É uma casa gigante sobrevoando a escuridão e a voz de Abel, ininterrupta, insaciada a dar conta aos quatro rostos dessa memória súbita e fugaz. A parede é toda azul e decresce, em plano inclinado, desde as sebes crepusculares, até cair mais abaixo, amparada e lisa, sobre o nível íngreme e oblíquo da calçada. Por cima, o gradeamento persa, cobalto, queirosiano; misto de memória de Havana e de fumo exótico oriental, num único pátio de intimidade invisível. Abel fica pasmado quando olha e distingue, atrás dos desmedidos jarros de mármore e dos frontões de basalto, a mancha do imenso limoeiro que ascende às varandas cheias de azulejos, de onde pende, para sempre, uma penumbra sonâmbula e plena de histórias ainda caladas, sigilosas. É Lisboa, esquecida já do seu próprio império.
E Dona Joana achou bizarro tudo o que Abel, na altura, descreveu e efabulou.
Que já ali tinha morado, dizia. E que o pátio era então liso, sem grades, sem poço, nem árvores.
Apenas cavalos, três grandes cavalos brancos que um cantor albanês, seu amigo, lhe dera após uma magnífica viagem aos mares do sul. E talvez um imenso violoncelo. E uma mangueira gigante. Nessa altura, continuava Abel, tornei-me num homem muito rico, não estão ainda a ver quem eu era?
Dona Joana continua a levantar os olhos para o topo da rua, equilibrando-se nos ombros da neta, quase submergindo no coração do espanto, a inquirir, de súbito, na direcção do grande narrador - Mas, senhor Abel, você diz que foi o Ezequiel e o Cesário Leme, ao mesmo tempo? Já morreram os dois e eram tão bons cantores! Abel premiu os lábios e, numa mudez antiga, sussurrou, entre dentes, como que a exceder o sorriso de velho nauta indecifrável:
Eu conto-lhe tudo, eu conto-vos tudo isso. Ainda a noite é uma criança. Fui, de facto, todos esses e muitos outros, juro.
Ao fundo, esquecido, de costas para o presente, o Tejo, outra vez e sempre. Entre a maresia dos escaleres e arlequins, à beira do tumulto, dos prantos, das ameaças do dia e uma ansiedade súbita, ameaçadora a crescer, minuto após minuto, no coração de Abel.
A rádio diz que o governo mandou a polícia intervir. Tudo pode agora acontecer. Uma fila ininterrupta de carros do lixo sobe entretanto a D. Carlos e a luz intermitente e cor-de-laranja espalha-se pelos edifícios, cruza-se com sirenes e luminárias e Abel a respirar o ar ainda fresco do serão, encostado ao candeeiro e de retorno à sua história. Enquanto é tempo. O coração a bater, a bater.
Um dia, quando regressava à casa da Bica, um mercedes de janelas baças e escuras pára a meu lado. Como se fosse em banda desenhada, a porta de trás abre-se e uma senhora de vestido curto pede-me que entre e que me sente a seu lado. Assim faço e, em pouco mais de dois minutos, percebo logo que aquilo é coisa da televisão pública, da BTP. Levam-me para o restaurante panorâmico de Monsanto, ao ritmo de clichés mais ou menos estudados, frases entrecortadas e piropos de pivot. Por fim, quando posto à prova do caviar, da vista deslumbrante da capital, do sabor a ostras e de algumas promessas mais arrojadas, ouço subitamente a senhora a contar-me a história toda da sua vida; que era directora de programas da BTP, que às vezes até sentia depressões existenciais, que era do stress, do serviço público, do caraças.
Somos mesmo um país de confissões afectuosas, pensei. Paga a conta e a encorajante gorjeta, sem grandes demoras, a senhora reencaminhou-me até ao carro e clamou ao chauffeur para que se despachasse. De repente, fez-se luz no nosso caminho. Era uma espécie de via láctea a subir-me pela coluna, era um brilho turvo a povoar-me um súbito desejo. Durante a curta viagem, pousámos as mãos no mesmo encosto que era de pele e tocámos um no outro com os joelhos, com os olhares fugidios, com os ombros quase nus, com os lábios entreabertos; era da hora, dizia ela, e, por fim, talvez porque o serviço público a tal aconselhe, lá acabámos juntos na suite do Penta. Juro que a vista não era menos esplendorosa da que havíamos vislumbrado em Monsanto.
Seriam umas cinco da manhã, já a humidade da minha voz se espalhara por aquele ginásio de intimidades furtivas, já os nossos corpos se haviam incendiado em pequenos trevos de bramido e suor, quando, sem mais, com a maior das friezas, a senhora se voltou a munir do seu vestido amarelo e jade, e, de rompante, calculista e marciana como nunca, puxou do contrato que tinha capa de cabedal, folhas de gramagem pesada e montantes muito altos e já definidos. Abriu a maleta, retirou a parker e, por baixo das linhas escritas e revistas, coube-me apenas assinar. E fi-lo até pelo medo de perder qualquer coisa que não conseguia identificar.
E a rádio a dizer que o governo mandou a polícia intervir. E que agora tudo pode acontecer. Ouvem-se sirenes ao longe, a cidade sente-se ameaçada. Abel também.
Mas a história continua.
Abel tinha-se esquecido definitivamente de tudo, mudara sem quase dar por isso e, claro, passava agora o tempo em quartos de hotel de duas, três ou quatro estrelas, entre restaurantes, aviões, autocarros e táxis de província.
Pouco depois, passaram os quatro a pé pela Embaixada de França e desceram depois a sombria Rua do Marquês de Tomar, onde a colina volta a descer para Boqueirões, Poços, Remolares e antigas lembranças de maremotos. Dona Joana, a avó de Júlia, aparecera entretanto na esquina. Tal como os outros, ouvira a deslumbrante frase inicial da história de Abel e já não foi capaz de abandonar o grupo.
Seria isso possível?
A meio caminho da ladeira tomarense, ainda houve tempo para uma paragem, talvez o alento da grande descida:
É uma casa gigante sobrevoando a escuridão e a voz de Abel, ininterrupta, insaciada a dar conta aos quatro rostos dessa memória súbita e fugaz. A parede é toda azul e decresce, em plano inclinado, desde as sebes crepusculares, até cair mais abaixo, amparada e lisa, sobre o nível íngreme e oblíquo da calçada. Por cima, o gradeamento persa, cobalto, queirosiano; misto de memória de Havana e de fumo exótico oriental, num único pátio de intimidade invisível. Abel fica pasmado quando olha e distingue, atrás dos desmedidos jarros de mármore e dos frontões de basalto, a mancha do imenso limoeiro que ascende às varandas cheias de azulejos, de onde pende, para sempre, uma penumbra sonâmbula e plena de histórias ainda caladas, sigilosas. É Lisboa, esquecida já do seu próprio império.
E Dona Joana achou bizarro tudo o que Abel, na altura, descreveu e efabulou.
Que já ali tinha morado, dizia. E que o pátio era então liso, sem grades, sem poço, nem árvores.
Apenas cavalos, três grandes cavalos brancos que um cantor albanês, seu amigo, lhe dera após uma magnífica viagem aos mares do sul. E talvez um imenso violoncelo. E uma mangueira gigante. Nessa altura, continuava Abel, tornei-me num homem muito rico, não estão ainda a ver quem eu era?
Dona Joana continua a levantar os olhos para o topo da rua, equilibrando-se nos ombros da neta, quase submergindo no coração do espanto, a inquirir, de súbito, na direcção do grande narrador - Mas, senhor Abel, você diz que foi o Ezequiel e o Cesário Leme, ao mesmo tempo? Já morreram os dois e eram tão bons cantores! Abel premiu os lábios e, numa mudez antiga, sussurrou, entre dentes, como que a exceder o sorriso de velho nauta indecifrável:
Eu conto-lhe tudo, eu conto-vos tudo isso. Ainda a noite é uma criança. Fui, de facto, todos esses e muitos outros, juro.
Ao fundo, esquecido, de costas para o presente, o Tejo, outra vez e sempre. Entre a maresia dos escaleres e arlequins, à beira do tumulto, dos prantos, das ameaças do dia e uma ansiedade súbita, ameaçadora a crescer, minuto após minuto, no coração de Abel.
A rádio diz que o governo mandou a polícia intervir. Tudo pode agora acontecer. Uma fila ininterrupta de carros do lixo sobe entretanto a D. Carlos e a luz intermitente e cor-de-laranja espalha-se pelos edifícios, cruza-se com sirenes e luminárias e Abel a respirar o ar ainda fresco do serão, encostado ao candeeiro e de retorno à sua história. Enquanto é tempo. O coração a bater, a bater.
Um dia, quando regressava à casa da Bica, um mercedes de janelas baças e escuras pára a meu lado. Como se fosse em banda desenhada, a porta de trás abre-se e uma senhora de vestido curto pede-me que entre e que me sente a seu lado. Assim faço e, em pouco mais de dois minutos, percebo logo que aquilo é coisa da televisão pública, da BTP. Levam-me para o restaurante panorâmico de Monsanto, ao ritmo de clichés mais ou menos estudados, frases entrecortadas e piropos de pivot. Por fim, quando posto à prova do caviar, da vista deslumbrante da capital, do sabor a ostras e de algumas promessas mais arrojadas, ouço subitamente a senhora a contar-me a história toda da sua vida; que era directora de programas da BTP, que às vezes até sentia depressões existenciais, que era do stress, do serviço público, do caraças.
Somos mesmo um país de confissões afectuosas, pensei. Paga a conta e a encorajante gorjeta, sem grandes demoras, a senhora reencaminhou-me até ao carro e clamou ao chauffeur para que se despachasse. De repente, fez-se luz no nosso caminho. Era uma espécie de via láctea a subir-me pela coluna, era um brilho turvo a povoar-me um súbito desejo. Durante a curta viagem, pousámos as mãos no mesmo encosto que era de pele e tocámos um no outro com os joelhos, com os olhares fugidios, com os ombros quase nus, com os lábios entreabertos; era da hora, dizia ela, e, por fim, talvez porque o serviço público a tal aconselhe, lá acabámos juntos na suite do Penta. Juro que a vista não era menos esplendorosa da que havíamos vislumbrado em Monsanto.
Seriam umas cinco da manhã, já a humidade da minha voz se espalhara por aquele ginásio de intimidades furtivas, já os nossos corpos se haviam incendiado em pequenos trevos de bramido e suor, quando, sem mais, com a maior das friezas, a senhora se voltou a munir do seu vestido amarelo e jade, e, de rompante, calculista e marciana como nunca, puxou do contrato que tinha capa de cabedal, folhas de gramagem pesada e montantes muito altos e já definidos. Abriu a maleta, retirou a parker e, por baixo das linhas escritas e revistas, coube-me apenas assinar. E fi-lo até pelo medo de perder qualquer coisa que não conseguia identificar.
E a rádio a dizer que o governo mandou a polícia intervir. E que agora tudo pode acontecer. Ouvem-se sirenes ao longe, a cidade sente-se ameaçada. Abel também.
Mas a história continua.