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terça-feira, 18 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 4
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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A primeira vez que dei a volta ao país, tive que meter baixa nos Seguros e deixei a mulher e a filha por mais de vinte dias. Foi um sucesso. Cheguei a casa uma semana depois do previsto e gozei a vida como nunca. As coisas começavam a mudar. Já não passava o tempo a descer as escadas rolantes da Estação do Rossio, nem corria, todos os dias, pela esquina do Americano para reencontrar a Luísa e, à noite, como é que hei-de dizer, quase até me esquecia de ouvir o choro da miúda, a morgadinha da novela e as discussões acerca da goma para a roupa, dos tapetes cheios de pó, da lixívia entornada no aparador.
Perdi esmero, antevi mudanças, senti no espírito uma espécie de energia quase diabólica, um augúrio de coisas nefastas. Não sei bem explicar, mas era como se já soubesse que caminhava desalmadamente para a frente, não em simples fuga, mas com muito maior velocidade; tinha-me tornado num autêntico rastilho em fogo que me enchia de abismos, como se uma deusa terrível, tentadora e com olhos de fogo me atiçasse a cumprir um destino impossível, improvável, mordaz ou mesmo fáustico.

Abel a dizê-lo de sobrancelhas vincadas, cego de convencimento e talvez até de pânico. Parecia um verdadeiro acossado. Diga-se.

E Isabel perguntou - Mas... o senhor cantava música pimba? Abel colocou as mãos nos bolsos e avançou, na frente do canteiro, até ao caramanchão. Por dentro, é como um alpendre suspenso em hastes metálicas verde escuras, sobre o qual escorre uma tímida trepadeira. E Isabel a tentar reter o riso, o despropósito sem explicação.
Mais atrás, um semicírculo de cadeiras rodeia as quatro mesas de jogo de dominó, sob a armação de heras muito longilíneas e frágeis. Apenas dois homens, quase invisíveis, ainda trocam as peças alvinegras do jogo, à luz da estrela da tarde que é, como se sabe, também a da manhã.
E Isabel acabou mesmo por conter o riso e disse:

Chamaram-lhe o Zorba, porque dançava muito bem, acrescentou. Puseram-lhe o nome na Grécia, quando o filme saiu, não foi pai?

Talvez tivesse acontecido naquela ilha comprida que mais parecia um alfinete, quando vista de avião. Chamavam-lhe a ilha de Idra, essa que fica entre o Pireu e as famosas ilhas de Aegina, Methana e Galatas e que Abel também lembra, porque foi de lá que, um dia, reentrou em Portugal para se vingar de muitos males. Mas isso foi noutra vida, noutro tempo, lá chegaremos.

Foi em frente ao Museu Nacional de Arte Antiga que Abel, interrompendo por momentos a história, acabou por responder. De facto, aquilo que, na altura, cantava era mesmo pimba. Afinal, era música divertida e também agitada como a grega, insistiu com humor. Com os olhos um pouco vermelhos. Com a cara inerte de tanta montanha ainda por desbravar. A vida é, toda ela, feita da mesma escalada, pensou. E o que irá Leonor pensar de mim, depois de tudo isto?

Um dia, perto de Torres Novas, um pouco depois da apoteose, entre palmas e vivas e bravos, subi a uma das barracas onde serviam bifanas, vinho, gritos luarentos, roncos; onde nos agraciavam com garrafas de Sagres, abraços, saudações lancinantes; onde nos saudavam com urros, laivos de tragédia, suores de animal a arder, fatias de corado, febras e muito mais.
Consegui, por momentos, afastar-me das tábuas de madeira que faziam de balcão e, de repente, fiquei ali de pé a um canto, rabiscando autógrafos sobre os guardanapos gordurosos; ali mesmo tinha ficado Abel, talvez luzindo nos olhos aquele mar de lâmpadas ao vento, suspensas no cordel que ia e vinha, como se fosse um destino escrito pelas marés de um logro espartano. Viu então, nesse instante, diante de si, a mulher de saia rasgada até à coxa, divinamente prostrada diante do tampo cheio de garrafas da Vialonga; estava calada, de lábios very rouge, disputada pelos homens gordos e pequeninos de cara vermelha e carótida quente.
Ia e vinha como o fio de prumo da vida; ia e voltava como as marés que se subtraem à vida pela necessidade e pelo ardor de se repetirem à saciedade. Até que, chegada a sua vez, uns dias mais tarde, Abel acabou por lhe pegar na mão e trouxe-a consigo. E jamais a devolveria àquele sítio onde, até então, pertencia.

Trouxe-a comigo para Lisboa e meti-a numa casa pequena, talvez esguia e secreta, nos altos da Bica. Chamava-se Arlete e era tão alta como a menina, quase não falava e foi um brilho que Deus, nessa altura, me deu.

Suite número 2 em D menor, BWV, 1008, prelúdio. Onde é que ouviste dizer tal coisa? - perguntou Zorba, desviando o assunto, sorrindo de lado, imaginando as ancas de Arlete. Foi a Júlia que é minha amiga e anda no Conservatório. Mora aqui perto, costumo encontrá-la às vezes, quando saio da Cruz Vermelha. De certeza que era isso que estavam a tocar. Por que é que te ris, pai?

Saía daquela janela, ali. Daquela, sim.

Zorba aparentemente alheio, com os olhos a demorarem-se na estátua do pequeno largo. A figura branca está grávida e eleva-se da fonte com obstinação. Isabel a descrever a mesma figura feminina, esculpida, ágil, com um dos seios à mostra, o da esquerda, enquanto o menino-anjo, por baixo, apenas dispõe de uma simples asa, a da direita.

Abel, desconcertante, com os olhos ainda vermelhos, a concluir que o menino-anjo é portador de uma seta esverdeada, negra, cheia de veneno na ponta, inundada pelo fogo.
Para que martírio ?
Deixemo-nos de esculturas e voltemos mas é à vida, repetiu.
(Teria muita pena, se a polícia me apanhasse antes de eu contar tudo o que tenho para contar).