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segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Folhetim

O Trevo de Abel – Episódio 3
Primeira Parte – O tempo de Adão
Folhetim do Miniscente
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Sempre que a vida me corria mal, cantava. Enquanto a Luísa passava a ferro e lá fora se ouviam trovoadas, eu cantava. Abria o peito e os sons saíam, que maravilha que era, acredite.

Sobre a calçada, folhas de plátano, rápidas, leves, a embaterem nas grades, nos painéis de publicidade, nos aros esquecidos pelo tempo corrente. São rostos mudos, anunciando telemóveis, revistas, shoppings de cibernautas. São carros e mais carros, milhares de carros a abafarem a voz e a discrição das ervas, de antigos chorões, gerânios ou vasos de alecrim desnaturado. Depois de Santos, a Avenida 24 de Julho entretém-se com vendas de gasolina e, para além da nuvem de fumo em forma de balão sem fim, para os lados do rio, um imenso cartaz ainda colorido anuncia a velha rota da Expo 98. É uma espécie de tira vermelha e amarelada, extensa como a memória dos maiores grafitos, onde, com humor hip hop, se desenham peixes, naus e aves bruxuleantes, ou seja, precisamente aquilo que o mar abriga, embala e vislumbra.

Eu gostava tanto que acreditassem na minha história! E se o Porfírio me denuncia, o que vai ser de mim?

Contudo, nesse tempo, tudo era ainda muito prosaico e fácil de contar. E Zorba logo a sorrir de tanto desvario e lugar-comum que pareciam, por agora, povoar o excitado discurso de Abel.
Isto sempre foi para mim uma espécie de ascensão ao paraíso, continuava Zorba inesperadamente, como que a interromper a atenção, as palavras e a presumida urgência de Abel. Ao subir as escadas que vão dar ao Largo das Janelas Verdes, a cidade surgia agora por baixo tornando-se ribeirinha, litoral, solitária, uma verdadeira lembrança de cais.
Quantos anos tem a sua filha, a propósito? Sobem-se os degraus que são de basalto puro, ondulados pelas antigas marés. Erosões no limiar da memória possível. A história continua.

É verdade, é. A minha filha é nova de mais para mim, tem só dezoito anos. Tem toda a razão. Para si, não seria nova demais, mas para mim, é uma espécie de neta.

Lá em cima, no Jardim 9 de Abril, já a Isabel estava entretanto debruçada sobre as grades e as alturas. Estava verdadeiramente paralisada ou deslumbrada, entre os jeans em fúria, apertados e bem moldados, e a doçura de um extraordinário sorriso, a Isabel. Uma menina alta, de sardas, de voz muito fina, a Isabel. Zorba mudou de cara, de tom, de cor, de idade.

Ainda nem Abel tinha contado que foi três anos após o casamento que, pela primeira vez, ganhou dinheiro a sério. Sempre a cantar. Foi num festival popular realizado num casino e, a partir dessa data, a vida começou de facto a mudar. A mudar, a mudar. E dizia-o com medo que Zorba o pudesse reconhecer de algum lado.

Até que Lisboa quase se ia fazendo noite e os três se sentavam, por momentos, num dos bancos do jardim. Por baixo, o cais tornou-se numa espécie de reflexo fosco e coado de água verde escura que, nas docas, imóvel, ainda parecia perscrutar o sabor nascente da ferrugem, ou a quilha inesperada das embarcações de ouro. E Abel a pensar que esta é, de certeza, a véspera do último dia da sua estranha vida. Água obscura, sépia, azul para ser cantada pela boca alumbrada dos poetas e pela visão dos lúcidos. Quantas horas de vida me restam ? Pergunta Abel em silêncio. Junto ao rio, a gare é como uma caixa de betão clara, raspada de negrume e sujidade no tecto. Por onde lentamente deslizam sombras noctívagas de meteoritos, estrelas cadentes e helicópteros e onde também se ergue uma antena electrónica que roda sobre si, tal como os sonhos quando desvendam mar, cegueira e fado após a grande ponte. Há que contar tudo, seja a quem for, antes que o pior me bata à porta. Pensou ainda Abel.

Entre concertos e viagens, deixei, quase de repente, de ser um trabalhador escrupuloso e zeloso. Passei a chegar a casa sempre muito tarde, era como se uma nova adolescência me batesse à porta.

Ao longo do cais, a gare perde-se num imenso terraço totalmente vazio que se assemelha aos pontões de Oostende ou de Haia. Luzes de holofote amarelado no lusco-fusco permanente do dia, entre o sol encoberto e as nuvens que ainda decoram a desmaiada saudade do império. Ou o longo fim de tarde da ilusão portuguesa.

Tirando isso, continuava Abel, todos os dias a vida era cada vez mais igual. Um verdadeiro cemitério parado na repetição dos actos. Uma memória despovoada. O que estaria por acontecer, após tanta ilusão de harmonia? E que saudades da Barcelona doutros tempos e das idas a Sintra com a Leonor!

De súbito, muito ao longe, ouviu-se uma campainha insistente. A passagem de nível abriu-se e o comboio da linha esfumou-se, por fim, a grande velocidade, ao lado dos eléctricos e das inúmeras faixas de rodagem apinhadas de criaturas que navegam sobre medos e rodas. Entra mais um barco no Tejo, entretanto. O vento é rápido, calcorreando a colina e o caramanchão do jardim. Um barco que entra na barra e, despercebidamente, Isabel a segui-lo sob a ramagem da árvore mais avançada deste miradouro, onde Ulisses, um dia, talvez tenha escutado as palavras do adivinho Tirésias.

E Abel volta a repetir, em silêncio, que já se sabe há muito que não o poderão reconhecer. Tanto melhor assim. Mas até quando? Tanta plástica, tanta vida sem destino!

Sobre o miradouro, rematando o espaço magnífico de luzes, versos, engenharias e vislumbres, definem-se, ao fundo, sobre o tabuleiro irreal da ponte, os minúsculos e sucessivos faróis e luminárias que se atropelam com a voragem daquilo que são os novos mitos silenciosos. Uma pradaria de espanto para o olhar, diria o herói em tempo de heróis.

Se calhar, o que me aconteceu a mim pode também ter acontecido a toda a gente, não é verdade? Quem sabe, se não anda meio mundo calado, com medo ou até com vergonha de contar precisamente o mesmo. O impossível.
Quem sabe?!

Isabel como que pareceu entender a interrogação silenciosa de Abel e, talvez por isso mesmo, preferiu fixar os olhos na cor violeta, quase bordeaux, da imensa parede. Antes de tornar a encarar o céu com a nuca levemente descaída para trás.
Nesse momento único, levantaram-se os três e dirigiram-se para as grades.

E Isabel e Zorba a lembrarem-se, minuto após minuto, daquela primeira frase de Abel.
Como é que é, de facto, possível uma coisa dessas?

Num dos ramos da imensa árvore, o corvo voltou a bater as asas e voou depois sobre a antiga beira-mar aluvial de Lisboa, sobre o empedrado macio do porto que se desfaz e liquefaz numa multitude de luzes e breu.
Isabel levanta mais uma vez a cabeça e Zorba, atento aos pasmos e peripécias da história de Abel, envolve com muita força os ombros da filha.
Tempo de compaixão.