As escrituras do regime
Na passada semana, quase no final do longo discurso de Mário Soares, a citação dos últimos quatro versos do poema Liberdade de Fernando Pessoa levantou a sala do Altis. Ouviu-se então um murmúrio de fundo, uma sacudidela no torpor do ritual, ou, até talvez, um rumor de felicidade pela devoção reencontrada. Não tanto a de Soares, mas uma outra mais profunda e silenciosa: precisamente aquela a que o regime vem devendo investiduras há já algumas décadas.
É verdade que Fernando Pessoa se tornou, nos últimos trinta anos, numa espécie de texto puro e intocável que ninguém põe em causa e a que todos, ou quase todos, recorrem para tornar o presente num episódio com algum sentido. Tal como nos ‘tempos antigos’ os profetas utilizavam a citação da escritura para atribuir coerência ao vivido, e em primeiro lugar ao presente (em conformidade com uma ordem superior e indiscutível), também o actual regime – constitucionalmente laicizado e dissociado das âncoras espiritualizantes do regime que o antecedeu - acabou por encontrar em Pessoa o esteio ideal para transformar o seu verbo em convicção transparente.
Ramalho Eanes surgiu no final do PREC como o homem estóico e imerso em voz seca de comando para, mais tarde, vir a repousar na melancolia aparentemente épica e almofadada do regime. E foi durante essa viragem que terá dito, com o intuito de desencorajar a letargia lusitana, que era chegada a hora: “É a hora!” (encerrando, talvez para sempre, “Os tempos” da terceira parte da Mensagem).
O centenário do nascimento de Pessoa, em 1988, constituiu o momento por excelência de celebração escritural de Pessoa (a entrada para a CEE, de que os Jerónimos serviram de rosto para a cerimónia de investidura e também para a trasladação do corpo do poeta, definia um novo cenário a que a “identidade” não se podia subtrair). Vários livros importantes precederam a ritualização dessa data: de Eduardo Lourenço, Poesia e Metafísica: Camões. Antero Pessoa (1985) e o famoso Fernando, rei da nossa Baviera (1986); de António Quadros, Fernando Pessoa, Vida, Personalidade, Génio (1981) e iniciação global à obra (1982); de José Augusto Seabra, Fernando Pessoa ou o Poeta-Drama (1974) e O Heterodoxo Pessoano (1985); de Joel Serrão, Fernando Pessoa, Cidadão do Imaginário (1981), entre muitas outras obras de fixação mítica.
Para além da progressiva sacralização do baú do “Desassossego”, também Saramago colocou Pessoa na ribalta mística do renovado altar português, quando, após o sucesso da alegoria que foi o Memorial do Convento (1982), inventou um regresso ficcional de Ricardo Reis (1984) à “Pátria” (a 29/12/1935), um ano precisamente após a morte real do poeta, porventura para simbolicamente o ressuscitar.
Pondo de parte a cenografia de louvores à nossa inteligentsia criada pelo “Prémio Pessoa”, a década de noventa afastou-se um pouco da saga pessoana, até porque os novos desafios de abertura do mundo e de assunção tecnológica convidaram a novas teias e projectos, dos quais ressaltou, entre um singular optimismo em fuga para a frente, o ‘espírito de obra pública’ que haveria de ligar o “centrão” político à gesta de construção do C.C.B. e sobretudo da Expo-98.
Meia década passada sobre o Carnaval dos nineties, é verdade que o mundo mudou radicalmente, sobretudo por causa do pós-09/11, enquanto, a nível interno, a crise passou a metaforizar a própria doxa quase surreal do país (os primeiros-ministros evadiam-se a meio dos mandatos ou caíam no “caos administrativo”; escândalos como o da Casa Pia ou o dos incêndios proliferavam). É assim, com toda a naturalidade e já nas vésperas das eleições presidenciais de 2006, que Fernando Pessoa acabou por reentrar no nosso caminho.
Foi Mário Soares, como já vimos, quem primeiro o utilizou para justificar quase tudo: a intemporalidade, a vocação íntima, a “não-obsessão financeira” e um certo “humanismo” que vive à custa da proclamação retórica. Dias depois, o pouco inefável Louçã voltou a relembrar Pessoa através de um cliché publicitário conhecido. Tudo para dizer que irá “até ao fim” e que o seu espírito acabará por “entranhar-se” na galáxia da auto-flagelação ocidental. Não sei se Cavaco irá, dentro em breve, aparecer com a máscara de Alberto Caeiro a discursar sobre a sua aldeia e o quanto dessa “terra se pode ver no universo”. O que sei é que a mitografia portuguesa se reencontrou, mais uma vez, com a sua escritura preferida. Talvez assim descortinemos algum sentido, ou alguma “coerência forçada” como escreveu Franz Kermode, nos factos e nos meta-discursos que escorrem diariamente de modo instantanista diante dos nossos olhos.
Pondo de parte a cenografia de louvores à nossa inteligentsia criada pelo “Prémio Pessoa”, a década de noventa afastou-se um pouco da saga pessoana, até porque os novos desafios de abertura do mundo e de assunção tecnológica convidaram a novas teias e projectos, dos quais ressaltou, entre um singular optimismo em fuga para a frente, o ‘espírito de obra pública’ que haveria de ligar o “centrão” político à gesta de construção do C.C.B. e sobretudo da Expo-98.
Meia década passada sobre o Carnaval dos nineties, é verdade que o mundo mudou radicalmente, sobretudo por causa do pós-09/11, enquanto, a nível interno, a crise passou a metaforizar a própria doxa quase surreal do país (os primeiros-ministros evadiam-se a meio dos mandatos ou caíam no “caos administrativo”; escândalos como o da Casa Pia ou o dos incêndios proliferavam). É assim, com toda a naturalidade e já nas vésperas das eleições presidenciais de 2006, que Fernando Pessoa acabou por reentrar no nosso caminho.
Foi Mário Soares, como já vimos, quem primeiro o utilizou para justificar quase tudo: a intemporalidade, a vocação íntima, a “não-obsessão financeira” e um certo “humanismo” que vive à custa da proclamação retórica. Dias depois, o pouco inefável Louçã voltou a relembrar Pessoa através de um cliché publicitário conhecido. Tudo para dizer que irá “até ao fim” e que o seu espírito acabará por “entranhar-se” na galáxia da auto-flagelação ocidental. Não sei se Cavaco irá, dentro em breve, aparecer com a máscara de Alberto Caeiro a discursar sobre a sua aldeia e o quanto dessa “terra se pode ver no universo”. O que sei é que a mitografia portuguesa se reencontrou, mais uma vez, com a sua escritura preferida. Talvez assim descortinemos algum sentido, ou alguma “coerência forçada” como escreveu Franz Kermode, nos factos e nos meta-discursos que escorrem diariamente de modo instantanista diante dos nossos olhos.