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terça-feira, 23 de agosto de 2005

Os incêndios e o discurso sobre os incêndios

Ontem, Coimbra foi a cena quase ideal para o excelente texto de Fernando Ilharco, publicado no Público do mesmo dia, que, além do mais, a elevou ao nível de enigmática premonição. Deixo aqui um breve extracto para os menos atentos:

"Nas milhares de horas de televisão dedicadas nos últimos anos aos incêndios do Verão, a mensagem mais pesada, ainda que apenas uma suspeição, é a de que um dia as chamas destruirão não apenas as matas e as aldeias no meio dos montes, mas tomando as auto-estradas que têm vindo a ameaçar, queimarão também as cidades, o país e tudo o que nos fez chegar onde chegámos. Os "incêndios do regime" não estão apenas em Pampilhosa da Serra ou em Leiria; as chamas estão em todas as salas de estar do país, quando as famílias se juntam e nos incêndios do Verão vêem o poder a desautorizar-se e o país a questionar-se."

Mas a verdadeira explicação dos incêndios portugueses aparece inscrita na crónica de Vasco Pulido Valente (publicada no Público do passado Domingo):

"O meu pai tinha uma casa no Magoito, no meio de um pinhal. A casa ficava na encosta do rio da Mata, um riacho que ia dar à praia. Tinha uma varanda suspensa e uma vista sobre toda a serra de Sintra. Assisti à construção (o arquitecto foi Keil do Amaral, uma escolha política e funesta) e, obviamente, durante anos, passei lá as férias. Nessa altura, por volta de 1960-65, o Magoito, a 30 quilómetros de Lisboa, era uma aldeia primitiva sem electricidade, sem água canalizada e sem esgotos, com uma população pobríssima, que vivia de uma agricultura arcaica e de uma fábrica de cigarros a meio caminho de Sintra. No verão só vinham meia dúzia de famílias de fora. A praia, nunca muito boa, estava sempre deserta e havia por toda a parte, na falésia e nas rochas, percebes, mexilhão e búzios, que se apanhavam livremente aos quilos com uma espécie de canivetes curvos.Na outra encosta, em frente da casa do meu pai, íngreme e arenosa, mas dividida ciumentamente em pequenos talhões por muros de pedras, continuavam a trabalhar alguns camponeses. Por causa deles, existiam ainda alguns caminhos no pinhal e o rio da Mata não deixara de correr. No princípio de Junho, o caseiro do meu pai, um homem jovial, cortava os ramos secos, removia a caruma e levava as pinhas. Mesmo com sardinhadas clandestinas de bandos de arribação, em trinta anos não ardeu nada. Por sorte. Em 1980-81, o velho caseiro abriu uma mercearia e já não se arranjava quem quisesse limpar o pinhal. Os camponeses abandonaram a outra encosta e os caminhos pouco a pouco desapareceram. Os pinheiros, de que ninguém tratava, cresceram ao acaso em frente da casa e, excepto na varanda, tiraram a vista e taparam o sol. E até a varanda, no meio de metros de caruma acumulada, perdeu a graça. Para a gente do Magoito, esta história não foi uma história triste. Veio a electricidade e a água. Vieram estradas, centenas e centenas de casas, milhares de turistas. No tempo de uma vida, acabou o trabalho da pobreza e da fome. Entretanto, o vale do rio da Mata reverteu ao seu estado selvagem e os raros pinhais que sobreviveram à "urbanização" de massa são um barril de pólvora. Por falta de dinheiro e de pessoal, nem o Estado, nem os particulares podem tomar conta deles. Se amanhã vir na televisão um incêndio no Magoito, espero que me lembre do Magoito antigo e que não o lamente muito."

De qualquer modo, eu insisto: quem, longe da ruralidade profunda, não sentiu como sua e não testemunhou como sua a lenta desertificação (de décadas) do país não pode, hoje em dia, senão arrepiar-se com as consequências desse facto, mas sem, contudo, as compreender. Quando as vozes oficiais do regime apelam ao estudo das "causas estruturantes" do "flagelo", elas mais não fazem do que ecoar essa incompreensão embaraçante e, quer se queira quer não, carregada de uma vertiginosa perda de sentido. Essa perda é o rosto da nossa própria impotência.