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quinta-feira, 19 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
QUARTO EPISÓDIO
(A enigmática viragem)

A partir desse momento, não foi possível escutar nem mais uma palavra que Rui e Maia tenham trocado entre si. Cada um com a sua chave, diante do Mobilin 2000 - blue midnight; os gestos a demorarem-se, em câmara-lenta; as expressões a desfigurar-se, a transfigurar-se em close-up; o tédio das explicações a esfumar-se. Em fondue. Tudo, agora, visto de muito ao longe. Panorâmica. E a tensão a urdir-se e, depois, a serenar. Mas porquê ?

Seis da tarde. Junto às Montanhas de Jade, no miradouro dos 1200 metros, Maia e Rui saem do carro. Sentam-se, lado a lado, no banco de pedra. Escutam o vento ao longe e tudo parece indiciar um quadro de Hopper, tal é a tonalidade da espera, da imobilidade e do quebranto que deveria, no mínimo, ser inexplicável. Depois, sem acusar qualquer estranheza, Maia virou-se na direcção da grande fonte, cheia de estranhas grinaldas e ramagens de trepadeira e disse em voz muito baixa: - É altura de mudarmos. A partir de agora, guio eu. - Rui concordou. E acenou com a cabeça como se fosse um iô-iô preso a elásticos de feira, ou uma simples marioneta ligada a varas, ou aos fios pendidos na cruzeta mágica de onde invisíveis actores parecem domar o cansaço, a tensão e a cândida postura de Rui a levantar-se devagar, a passar o lenço pela testa, a olhar agora de frente para Maia: - Vamos, vamos embora. Lá para o serão, quando a noite cair de vez, guio eu o carro outra vez.
Assim seja.
Maia arrancou pela montanha acima, curva após curva. A luz a declinar, as sombras a crescer, longilíneas e a aragem a entranhar-se nas copas densas do arvoredo. Por baixo, o declive, o abismo, entre muros e os imensos vales de onde brota água benta e a colossal nascente dos quatro rios que se misturam, dois a dois, na planície aluvial da grande cidade.


Próximo Episódio: “O mundo não acaba hoje, pode ter a certeza. E o último a rir é sempre o que ri melhor, asseguro-lhe. - E Maia a levantar os óculos escuros com a ponta do dedo, a unha comprida e em forma de quarto crescente, vermelha, sanguínea.”