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segunda-feira, 16 de maio de 2005

O OLHO DO JAVALI
Folhetim em doze episódios
PRIMEIRO EPISÓDIO
(Uma verdadeira anunciação)

Talvez por pronunciar as palavras com dificuldade, o velho parecia dizer em surdina o outro nome daquela planta que eu há muito tinha esquecido. E repetia em voz alta, as sobrancelhas vincadas, a camisa feita num fole ao vento, os três dentes em forma de alfinete, um olho aberto e o outro fechado: - "São balsamitas, grande tónico... é para fazer chá contra os soluços", "Comprem o grande tónico, é contra os soluços, contra os maus augúrios!". E eu já a pensar em espasmos, em monstros, em mamas de silicone e com a mão direita dentro do bolso das calças a prender entre os dedos, com inusitada força, as chaves do carro. Passo ante passo, assim fui a bambolear sobre o passeio, qual salsa ou merengue a antever-me o ritmo, a passada, o destino, até que a passadeira me obrigou a parar.
Voltei a olhar para trás com alguma preguiça, avistei a mulher-polícia de sardas e, mais ao fundo, o homem emproado, continuava de balsamita na mão que é um pequeno caule com folhas raquíticas a culminar em três ou quatro rebentos minúsculos. Só mais tarde é que vim a saber, por mistérios do acaso, que aquilo era mesmo hortelã-francesa ou hortelã-romana-de-laguna. Tudo entre tracinhos para que não haja enganos. E o semáforo verde abriu finalmente para os peões, passei os dedos pela brilhantina, pus os óculos e avancei entre a multidão. Com passos mais vagarosos, de delonga, abri então o jornal para ver as grandes do dia. Eram mortes na Macedónia, seis gémeos nascidos em Valparaíso, ovnis em Basileia, quedas nas bolsas asiáticas e era, em primeiro lugar, a notícia do dia: a vacina maravilha. A invenção da vacina mágica. Feita a partir de sangue de javali. Que estranho, mas como era possível uma coisa daquelas?
Para trás, quais tambores napoleónicos, já muito ao longe, perdidos entre sirenes de ambulância e o estranho vendaval das obras, ainda escutei, pela última vez, os pregões ao bálsamo de balsamita. Um encanto com sabor aos prodígios de Bosch. Dobrei a esquina, dirigi-me de vez ao parque e só nessa altura me voltei a lembrar do encontro das seis com a Hellen, à porta do teatro. Por cima, o sol navegava no zénite entre nuvens baixas, a feira popular serpenteava roldanas gigantes e baforadas de óleo queimado que iam escalando a estratosfera. Rezava assim a harmoniosa história do planeta, quando, como acontece todos os dias, dei entrada no parque. Paguei o estacionamento pelo envidraçado da cabina pré-fabricada e pus-me finalmente a andar na direcção do carro. Era meio-dia em ponto. E o mais estranho estava prestes a acontecer.
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(Próximo episódio: "Seguiu-se a passadeira, uma mancha de insectos e as nuvens em forma de cetáceos. A grande parada. E foi aí, nesse intervalo do mundo, que Maia se lembrou da viagem de amanhã".)