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sábado, 11 de setembro de 2004

Evocando o 9/11


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É verdade que o pós-Segunda Grande Guerra Mundial criou uma nova disposição legal para aquilo que, à época, ainda era uma noção centrada e quase geométrica, o Estado-nação. A Carta das Nações Unidas foi, desde esse reatar da mais recente história da humanidade, uma espécie de Magna-Carta ou de Constituição reguladora do que passou a designar-se por Comunidade Internacional. Os vetos, os membros efectivos do Conselho de Segurança, os diferendos e as crises mundiais, as dissuasões e as desmedidas hipocrisias da guerra-fria, tudo isso se passou a basear nesse instrumento que, há cerca de meio século, assumiu a tentação de reordenamento do planeta. A partir dessa altura, pode também afirmar-se que o mundo nunca mais foi o mesmo.A queda do muro de Berlim é um facto simbólico que conduziu ao colapso das traves mestras onde todo este edifício assentava. Tal facto libertador, ou, mais geralmente, o facto de as ideologias e outras referências pesadas terem deixado de mobilizar as sociedades contribuiu para um mundo subitamente mais aberto, mais plural e com apetências para a reinvenção democrática. A estas alterações juntou-se uma outra que se traduziu pela entrada em cena de novas tecnologias, através das quais o mundo passou a ser codificado de um modo meteórico e sem precedentes. A legalidade de pós-1945 nunca mais foi a mesma durante esta fase que fez da década passada uma arena em que surgiram novos tipos de conflito (Golfo, Chechénia, Guerra civil da ex-Jugoslávia, Guerra do Kosovo) e de desafios (a mundialização das instituições, a nova economia, as inquietações ambientais globalizadas).O 11 de Setembro, aceite-se ou não, é um acontecimento ainda a decorrer que veio alterar profundamente a já frágil legalidade criada no pós-1945 e que, entre 1989 e 2001, hibernou em atmosfera pouco estável. Subitamente, o espectro do hiperterrorismo, a ameaça do terrorismo nuclear e a sistematização de novíssimos tipos de violência (mormente suicidário e ligado a fundamentalismos religiosos) vieram preencher o quadro incipiente onde uma nova ordem mundial tentava edificar-se. É no seio desta turbulência, própria dos períodos de transição entre duas legalidades duradouras, que a guerra iraquiana ainda acontece, que Madrid aconteceu, que Beslan aconteceu, que Jakarta aconteceu e que o próprio conflito milenar do Médio-Oriente está a acontecer.
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Portugal é parte integrante da NATO há muito tempo. Esta vertente Atlântica da defesa faz sempre mal a muita gente. Para muitos é uma alergia ainda dos tempos da guerra fria, para outros é um vírus anti-americano que prefere ver na Europa uma grande Suíça sem compromissos e submete a sua defesa e a da democracia a uma retórica sobretudo autofágica. Ter o privilégio de viver em democracia é, para esses pacifistas de conveniência, um dado adquirido e acabado, como se a defesa da democracia e a sua permanente construção não fosse um processo e um percurso complexos, tantas vezes reversível. Não aceitar uma defesa efectiva da liberdade e da democracia, cedendo aos que ao diálogo preferem a cultura do terror e da morte, poderá ser trágico. O prenúncio criado pelo 11 de Setembro de 2001 demonstra-o cabalmente. Viver em democracia para a denunciar permanentemente, recorrendo aos expedientes e fait divers anti-americanos, aos truques hipocritamente legalistas e à apologia de uma neutralidade suicidária, continua a ser o apanágio de muitos. Entendo-o como um luxo que o Ocidente se dá a si próprio. Um luxo que é próprio da liberdade e das democracias criadas nesta área do globo em que nos encontramos, isto é, neste intercontinente Euro-americano. No mundo de hoje, baseado na logotecnia, no instantanismo tecnológico e na actualidade global, a democracia está, no dia a dia, a inventar-se a si própria com uma celeridade sem predecentes nos últimos dois séculos e meio. E vai ter que fazê-lo, cada vez mais, não só contra a cultura do terror e da morte que grassa no planeta, mas também contra todo o tipo de apaniguados da desconstrução democrática que habitam e respiram no privilégio da própria democracia. Essa é, em última análse, a maior lição que o 11 de Setembro nos lega ainda hoje, passados que são já três anos do seu prenúncio. Até porque o 11 de Setembro não foi apenas um facto, uma ocorrência, ou um evento. Ele foi e é um o encetar de um novo quadro em que estamos compelidos a viver. Nele se esbatem tipos de vida, modos de agir, definições de valores e parâmetros civilizacionais. Esquerda e direita são tradições (respeitáveis) que já não se bastam para traduzir este novo arquétipo de separação de águas. Porque, ou se sentiu o 11 de Setembro como algo efémero, localizado e contextualizado historicamente, ou se viu nele um ataque corrosivo a uma forma de vida com que nos identificamos desde o pós-Iluminismo: a democracia. Confesso que estou claramente deste último lado. Ao contrário do que ocorreu na dácada de noventa (pós-dicotomias USA-URSS), altura em que as posições ainda se relativavam com amplitudes significativas, dando corpo a teorias pós-modernas e descontrutoras dominantes na época, hoje em dia tornou-se insuportável não tomar claramente uma posição e ocupar um campo. Não de forma rígida, estriada ou emocional; mas sim de forma convicta, decidida e argumentada. Continuar a assobiar ao sabor do vento, procurando na brisa o confortável e dominantemente correcto é posição que, no dia a dia, mais desvalorizo. Infelizmente, basta abrir muitos jornais mais prestigiados da nossa pequena praça para ler e reler esse intertexto sem fim.
(a partir de um post do Miniscente escrito há um ano)