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domingo, 15 de agosto de 2004

Ficcionalidades de prata - 30


(Edgar Allan Poe, Lowell, Massachusetts, autor desconhecido, 1849)

O olhar íngreme e calmo, ao mesmo tempo, é um dom dos pioneiros. Nada os descreve, porque tudo parece cercá-los. Imaginamo-los por isso em rotação, como se do movimento imaginado um ou outro rosto pusesse a nu todo o desafio. Mas em vão. A roleta é menos impiedosa do que o mistério. Fica apenas o registo das paixões desocultadas: Poe, amante dos hiatos sem fim onde o visível e o invisível andam de mãos dadas e ameaçam inquietar pelo contraste, pelo drama arrepiante, pelo jocoso dos percursos entre morte e vida, entre ressurreição e suspiro pueril. Poe, amante de um pathos defensivo face à ideia então emergente de progresso, defensor de um pranto saudoso, de um personalismo visionário e de uma irremediável insatisfação que Schlegel, no feminino, baptizou por sehnsucht. Poe, amante da enigmática simbiose de olhares que parecem prefigurar, aqui e ali, uma prodigiosa intuição do tropo fotográfico. Poe, amante dos terrenos abruptos, da limpidez das ruas conspurcadas e da intemporalidade dos cisnes. Tudo e nada. ambos pertencem a esse olhar de amante compulsivo. Amante sem objecto, ou amante à procura do lado mais bizarro do objecto que se ama. Íngreme, calmo, quase a respirar.