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domingo, 8 de agosto de 2004

Cavalos de fumo e de gelo


Primeira imagem fotográfica: janela de Gras, Saint-Loup-de Varennes, 1826, Nicéphore Nièpce.

Que cor pode ter um rio congelado, num dia de Agosto como este que nos faz involuntariamente lembrar o sabor da chuva?
Embore não goste da pontuação da tradução, relembro Proust (e, no meu filme mais desacertado, evoco o cheiro a terra molhada e a granitos corroídos para além daqueles canais do meu bairro de Amesterdão que se imobilizavam, durante dias e dias, brancos branquíssimos, inundados de crianças com impermeáveis vermelhos, amarelos e azuis):

Francisca sentia muito frio para poder ficar parada, e fomos até à ponte da Concórdia ver o Sena congelado, do qual todos e até as crianças se aproximavam sem medo como de uma imensa baleia encalhada e indefesa, que fossem esquartejar.

Olho para o meu quintal e sei que estou longe de tais visões. Mas, de qualquer modo, lá recolhi as cadeiras de braços para resguardar as lonas dos imprevistos elementos. Ontem à noite, no mirante, vi chegar o exército de nuvens, lentas e volumosas a envolverem pelo sul a cidade com se fossem cavalos silenciosos com algum Átila a comandá-los. E depois os telhados lunares pareciam estancar o leite vivo da alvenaria numa espécie de simulada noite americana, onde cheguei a adivinhar o ambiente que envolveu Nièpce naquela sua primeira fotografia. Faltava um século para Proust, mas a cidade evocada era a mesma. Por mim, confesso que estou em todas as cidades ao mesmo tempo. Sempre respirei assim. Por cima do fenotextos das conjunturas. Estou lá. E abraço Nièpce e Proust num único gesto apertado.